Peixes em serviço

Espécies de água doce atuam na conservação de ecossistemas neotropicais. Preservá-las é demanda inadiável, defende autores de publicação científica internacional

Texto: Hugo Costa

Estudantes da UnB. Foto: Anastácia Vaz/Secom UnB

Cerca de um terço dos peixes de água doce do planeta habita a região biogeográfica neotropical. Rios e lagos da área, que vai do extremo sul do Chile ao México, abrigam mais de 6 mil espécies. Muito mais que comida no prato ou ornamento para aquários, esses animais representam a viabilidade da fauna e da flora regional. São responsáveis por numerosas atividades, algumas delas evidenciadas em artigo publicado em 2022 por pesquisadores brasileiros na revista Hydrobiologia da editora norte-americana Springer.

O estudo Serviços ecossistêmicos gerados por peixes neotropicais (tradução livre) deriva de ampla pesquisa de literatura e considera a atuação dos peixes em quatro dimensões: a cultural e as de provisão, de regulação e de apoio. No aspecto cultural, destacam-se os valores de comunidades tradicionais e elementos relacionados à educação e ao turismo. A provisão inclui a alimentação, a geração de renda e os potenciais farmacológicos. A regulação abrange a dispersão de sementes e a decomposição de materiais. Engenharia de ecossistemas e processamento de matéria orgânica estão entre as atividades de apoio. 

A relevância dos peixes neotropicais tem a piraputanga (Brycon hilarii) como um de seus símbolos. Comum nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em especial nos afluentes da bacia do Rio Paraguai, essa espécie é apreciada na culinária local, encanta visitantes com volumosos cardumes em regiões turísticas como Bonito (MS) e ainda cumpre a função de disseminar sementes das frutas que caem das árvores da mata ciliar e dos restos da alimentação de outros animais como macacos e pássaros. 

O curimbatá (Prochilodus lineatus), também conhecido como papa-terra, e as piranhas (grupos da subfamília Serrasalminae) são outras espécies que se destacam pelos serviços ecossistêmicos, aponta o biólogo e professor da Faculdade UnB Planaltina Eduardo Bessa. Membro da equipe da pesquisa, ele explica que o curimbatá age como “engenheiro de ecossistemas, revolvendo substratos no fundo dos rios”. Já as piranhas têm apelo gastronômico e estão presentes na cultura por seus temidos hábitos carnívoros. “Elas estão nos filmes e no imaginário popular. Houve inclusive o episódio em que o ex-presidente Theodore Roosevelt foi ao Amazonas para ver de perto a carcaça de um boi ser devorada por piranhas”, lembra sobre a emblemática visita do político norte-americano no início do século passado e que ajudou a atribuir fama ao peixe. 

Pesca artesanal no Rio Negro (AM) provê alimentação e renda para ribeirinhos. Foto: José Sabino/Natureza em Foco

Bessa reforça a necessidade da conservação dos habitats dos peixes neotropicais, ameaçados por atividades humanas, entre elas a derrubada de florestas, a poluição de rios e a pesca predatória. Ele destaca que a defesa dos peixes, não raro, precisa passar por argumentos econômicos. Nesse sentido, o estudo aponta os setores de turismo, pesca, alimentação e indústria farmacêutica entre os beneficiados pelo rol dos serviços gerados por espécies de água doce. Ainda há evidências de que os peixes tenham influência sobre o controle de doenças, o clima e a purificação de águas.

Líder da pesquisa, o professor da Universidade Federal de Tocantins (UFT) Fernando Pelicice considera “curiosas” a desinformação sobre os diversos papéis dos peixes e a consequente falta de cuidados com a preservação, fatores que têm causado expressivo declínio de abundância e de diversidade de espécies. “Nosso estudo deve cumprir papel positivo neste aspecto, pois é o mais abrangente já publicado sobre o tema, compilando a produção científica disponível e organizando o conhecimento existente”, analisa.

Responsável por ilustrações do artigo científico e deste ensaio da revista Darcy, o professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) José Sabino afirma que os peixes acabam por não ter a devida atenção nas pautas em defesa da biodiversidade. “Peixes não apresentam o apelo de conservação das araras-azuis ou das onças-pintadas. Carismáticos, imponentes e coloridos, aves e mamíferos recebem muito mais atenção – e recursos para pesquisa e manejo – do que os peixes de água doce”. O docente se mostra favorável à vertente da biologia da conservação que vai “além das espécies-bandeira” e enfatiza “funções ecológicas e serviços ecossistêmicos”.

Sabino estuda o comportamento dos peixes há 41 anos e identifica os aspectos culturais como “os menos perceptíveis”, embora não menos importantes entre os serviços analisados. “Peixes são fonte de inspiração estética, de lazer e até mesmo de lendas e crenças”, diz. Ele analisa que as vidas das espécies de água doce estão entrelaçadas a culturas e a saberes humanos. Entre outras manifestações, essa relação se expressa na oportunidade da subsistência e nos saberes tradicionais de ribeirinhos e povos originários.

Título do artigo: Serviços ecossistêmicos gerados por peixes neotropicais (Tradução)

Onde foi publicado: Revista Hydrobiologia (Editora Springer, 2022)

Acesso: https://link.springer.com/article/10.1007/s10750-022-04986-7

Nós fazemos ciência

Eduardo Bessa é professor da Faculdade UnB Planaltina. Doutor em Biologia Animal pela Universidade Estadual Paulista, integra o comitê de educação da Animal Behavior Society e do Painel Internacional de Mudanças Comportamentais.

Fernando Pelicice é professor de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Tocantins. Doutor em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais pela Universidade Estadual de Maringá.

José Sabino é docente em Ciências Biológicas na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas e integra o Conselho Científico da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos.

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