Poluição (quase) invisível

Pesquisadores desenvolvem sensores capazes de identificar e quantificar microplásticos e pesticidas nas águas do Distrito Federal

Texto: Marcela D’Alessandro | 3 jun. 2024

Excesso de plásticos no meio-ambiente gera resíduos contaminam as águas e a cadeia alimentar. Foto: Martine Perret.

Uma garrafa pet inteira, amassada ou cortada. O restinho de tecido sintético cortado por tesoura, que vira quase um “pó de tecido”. O glitter usado em cosméticos ou roupas. A bucha desgastada de lavar louça. O que todos esses itens têm em comum é a geração de microplásticos – resíduos assim designados quando medem até cinco milímetros de diâmetro.

Na lavagem de utensílios diversos, no descarte inadequado do lixo e em outras situações, esses detritos acabam em contato com a água, passam pelas redes de esgoto e terminam em ambientes como lagos, rios e mares. Eles são comumente confundidos por peixes e por outros seres marinhos, que os ingerem como se fossem alimento; depois, esses animais são consumidos por seres humanos, os quais, até onde se sabe, também não conseguem eliminar essas substâncias do organismo.

A poluição plástica e suas consequências para o meio ambiente começaram a ser relatadas em publicações científicas ainda na década de 1970, nos Estados Unidos e no Brasil. De lá para cá, diversos estudos foram conduzidos em vários países e, há poucos anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) percebeu que deveria se envolver com o tema.

Em junho de 2023, seus especialistas alertaram para o “maremoto tóxico” causado pelo excesso de plásticos no meio ambiente. Segundo eles, a cada ano, 400 milhões de toneladas de resíduos desse material são geradas no mundo. Apenas o lixo marinho soma 37 milhões de toneladas por ano, sendo 85% desse valor composto de plásticos – volume que deve triplicar até 2040, de acordo com dados de 2021 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Hoje esse montante já equivale a 50kg de plástico por metro de área litorânea. A preocupação é com as consequências para a saúde, economia, biodiversidade e clima.

Professores Daniel Orquiza (ao centro) e Achiles da Mota (na tela) com os estudantes matheus Rotta, Juliana Novais, Daniel Vieira e Rômulo Santos, além da pesquisadora Renata Bueno (na tela). Foto: raquel Aviani/Secom UnB

A busca por ajudar a mitigar o problema reuniu pesquisadores de diferentes áreas da Universidade de Brasília (UnB). “Nos propusemos a criar um laboratório a partir da estrutura física já existente na UnB, que reunisse pessoas com conhecimento em Física e Engenharia, assim como em Química Biológica e Saúde Pública, para atuar em um problema bastante atual: a qualidade da água que consumimos”, lembra Renata Bueno, uma das idealizadoras do projeto em 2021, à época pós-doutoranda no Instituto de Ciências Biológicas da UnB.

A implementação do laboratório também buscou formar especialistas capazes de aplicar ferramentas interdisciplinares para propor soluções úteis à sociedade. “Nesse aspecto, temos obtido bons resultados com o trabalho conjunto dos alunos de mestrado na interface Biologia–Engenharia”, avalia a pesquisadora.

INOVAÇÃO

m dos focos da iniciativa é criar um sensor de micro-ondas capaz de realizar a detecção de microplásticos em meio aquoso, além de identificar outras características como tamanho, composição e quantidade desses resíduos por litro, por exemplo.

Por meio de pequenos canais criados e posicionados acima de um circuito elétrico impresso (como aquele presente nas placas internas de eletrodomésticos, com diversas trilhas metálicas interligadas), o sensor vai alertar para a possível contaminação da água ao emitir um sinal elétrico que passará de um lado ao outro. O alerta será gerado pelo dispositivo sempre que o ressoador (peça que armazena energia em forma de campo elétrico e campo magnético) detectar pequenas perturbações, como a presença de um microplástico.

Ressoador identifica perturbação no campo eletromagnético, traduzida pelo sensor pela variação na tensão elétrica. Detecta-se, ent]ao, se o material é ou não microplástico. Ilustração: Igor Outeiral/Secom UnB

“Ao passar pelos canais próximos aos ressoadores, o microplástico perturba o campo eletromagnético armazenado ali, alterando sua frequência de ressonância. Essa alteração produz uma variação na tensão elétrica que medimos no sensor, e assim é possível relacioná-la às características do microplástico”, detalha o professor de Engenharia Elétrica da UnB, Achiles da Mota.

“Se sabemos o volume de água que está passando pelo sensor e o volume do microplástico que passou por ali, conseguimos quantificar e transformar isso em concentração de microplástico por litro, por exemplo. E essa é a ideia do projeto: saber quantas partículas existem por litro de água”, explica Mota.

O sensor será integrado a um display que mostrará todas as informações aos pesquisadores. Também existe a intenção de, no futuro, utilizar inteligência artificial para otimizar a identificação de microplásticos. “Alguns tipos de algoritmos de inteligência artificial permitem facilitar esse tipo de detecção”, comenta.

Até o momento, o professor Achiles e Josaphat Desbas, mestrando em Engenharia Elétrica na UnB, já avançaram nas simulações e deram início à fabricação do primeiro sensor, que deve ser simples, quadrado (com cinco centímetros de cada lado) e leve.

“Agora sabemos a frequência de ressonância, como será a operação do sensor, a faixa de operação de tamanhos de microplástico e os tipos de microplásticos que conseguimos detectar. E já sabemos que detecta pedaços de até 200 micrômetros [unidade de medida equivalente à milésima parte do milímetro], mas estamos ainda na fase de simulação. Talvez consigamos captar inclusive resíduos menores do que 200 micrômetros”, espera Achiles da Mota.

Em parceria com o professor Ben-Hur Viana Borges, da Universidade de São Paulo (campus de São Carlos), a equipe testa diferentes frequências para o equipamento, que hoje opera com até seis giga-hertz (6 GHz). Quanto maior a frequência utilizada, maior a sensibilidade do sensor, ou seja, ele consegue detectar microplásticos ainda menores.

“A ideia é começar trabalhando nessa faixa de até seis giga-hertz, fazer as medidas aqui no Distrito Federal e depois tentar especializar um pouco mais o sensor. Uma vez compreendidos todos os princípios, dificuldades e gargalos de funcionamento, buscaremos aumentar um pouco sua frequência e, para isso, contamos com a colaboração do professor Ben-Hur”, destaca o professor de Engenharia Elétrica da UnB.

Eles trabalham para criar um detector de microplásticos com baixo custo, portátil e que viabilize o monitoramento in loco, por exemplo, quando se deseja analisar as águas de determinado local da cidade. A estimativa é que o sensor custe algo em torno de R$ 50 a R$ 100.

Estima-se que cada pessoa no planeta consuma mais de 50 mil partículas de plástico por ano, isso sem considerar a quantidade que é inalada. Fonte: Pnuma/ONU

PESTICIDAS

A segunda frente do projeto pretende, por meio de biossensores desenvolvidos pelos pesquisadores da UnB, identificar e medir em amostras de água potável do Distrito Federal a concentração do agroquímico mais popular do Brasil, o glifosato. Essa é a substância mais usada por aqui para eliminar ervas daninhas em lavouras de soja, milho, algodão, arroz, feijão, café, banana, cacau, cana-de-açúcar, entre outras, além das florestas de eucalipto e pinheiro.

Com largo espectro de aplicação – na agricultura, na silvicultura, em áreas urbanas e domésticas, no desenvolvimento de variedades geneticamente modificadas resistentes a ele –, é classificado como pouco tóxico pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e possui os maiores volumes de produção entre todos os herbicidas, de acordo com o Ministério da Agricultura e Pecuária.

Quando em contato com as plantas, a molécula de glifosato se liga a uma proteína – cujo nome simplificado é EPSPS – que existe naturalmente nelas, mas também pode ser encontrada em outros seres vivos, como fungos e bactérias. “Essa ligação [entre glifosato e EPSPS] é bem específica e faz com que a forma da proteína mude um pouco”, explica o professor do Departamento de Biologia Celular da UnB, João Alexandre Barbosa, responsável pela parte biológica da pesquisa.

Em alguns desses organismos a EPSPS é mais suscetível ao pesticida que em outros. E essa foi a peça-chave que alertou os pesquisadores para o potencial da proteína como componente biológico de um sensor capaz de identificar e medir o glifosato.

“Acoplando várias dessas proteínas numa placa bem pequena que os engenheiros nos forneceram, montamos o tal dispositivo [biossensor]. A placa e a proteína juntas podem ser usadas num aparelho para medir a mudança de forma da proteína, que será causada quando houver glifosato. Assim, por exemplo, um pouco de água de rio pode ser colocada na placa e medimos no aparelho se a proteína mudou de forma. Quanto maior o sinal medido pela mudança de forma da proteína, mais glifosato deve ter na amostra do rio”, detalha João Alexandre sobre o dispositivo.

Em laboratório, eles isolaram a EPSPS e depois modificaram sua sequência genética para que ela mantenha sempre alta afinidade à molécula do pesticida. “Quanto maior a afinidade da proteína pelo glifosato, maior a sensibilidade dos sensores, e com isso conseguiremos quantificar até mesmo concentrações pequenas dessa molécula na água”, explana Renata Bueno, que também atuou na parte biológica do projeto.

BASTIDORES

A proteína trabalhada pelos pesquisadores foi produzida pela bactéria Escherichia coli, ou E. coli, que existe naturalmente no intestino dos seres humanos e de alguns animais. Em laboratório, eles conseguiram separar a EPSPS de outras proteínas geradas pela bactéria e obtiveram a substância com alto grau de pureza. Atestaram a viabilidade de produzir em grandes quantidades a EPSPS modificada e, assim, poderem utilizá-la nas medições via sensor.

“Sem as alterações que fizemos, não seria possível quimicamente acoplar a proteína ao sensor. Então, as modificações garantem que a quantidade de proteína seja suficiente para todas as etapas do projeto e que, em aplicações futuras, teremos tanto quanto o necessário, e além disso que conseguiremos ligar a proteína aos sensores produzidos, construindo um dispositivo para detectar e quantificar o glifosato”, arremata Renata Bueno.

Daniel Vieira, mestrando em Ciências Biológicas, se debruça sobre essa parte do projeto. Segundo ele, em laboratório, é possível identificar quando há glifosato em contato com a EPSPS por meio do teste colorimétrico – quando se adiciona um reagente químico que indica a concentração de determinado elemento por meio do desenvolvimento de cor e da intensidade com que essa cor se manifesta. Na união entre molécula de pesticida e proteína pura, essa se modifica e libera fosfato inorgânico.

“Quando o glifosato interage, ele impede a reação da enzima e aí sim fica evidente no ensaio colorimétrico: sem fosfato não tem o ‘desenvolvimento de cor’, digamos assim”, atesta o discente.

Daniel Orquiza, professor de Engenharia Elétrica da UnB, destaca a complementaridade no trabalho das equipes. “Eles [da Biologia] estão desenvolvendo essa proteína que tem que ser afixada na superfície do sensor. O glifosato vai se ligar a ela tipo chave-fechadura, vai alterar a forma da molécula, e isso vai mudar as propriedades ópticas, que vão alterar no transdutor o sinal refletido proporcionalmente à concentração de glifosato.”

Esse transdutor é um sensor capaz de perceber e converter o fenômeno em sinais ópticos –luz que se propaga dentro de uma fibra óptica. A seletividade é uma característica importante do aparelho, que é projetado para identificar e quantificar apenas o glifosato na amostra aquosa.

MICROFLUÍDICA

Dois sensores, dois objetivos, uma equipe com diferentes expertises e uma ciência específica em comum, que viabiliza todo o experimento: a microfluídica. Sem essa tecnologia, os aparatos não conseguiriam captar as amostras de água em escala micrométrica – ela considera até a milionésima parte do metro ou a milésima parte do milímetro – para análise.

No caso do projeto da Universidade de Brasília, os sensores terão canais com um mínimo de 400 micrômetros (0,4 mm) e um máximo de dois milímetros, a depender das necessidades de cada pesquisa. O canal mais estreito, para se ter uma ideia, tem espessura um terço menor que a de um fio de cabelo.

“Minha função é integrar esse sistema, tanto o óptico quanto o sistema de radiofrequência, com uma parte fluídica, porque afinal de contas, queremos passar água contaminada para fazer análise. Para isso, eu preciso criar um dispositivo que faça a contenção desse líquido e que passe por cima da área que vai fazer sensoriamento”, explica a pós-doutoranda do Departamento de Engenharia Elétrica da UnB, Juliana Novais.

Molde utilizado para a parte microfluídica do projeto. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

Ela conta que os canais podem ser construídos em diversos materiais, como vidro ou plástico, mas nessa proposta da UnB estão sendo feitos na impressora 3D em um polímero chamado polidimetilsiloxano (PDMS), que é mais maleável e lembra o aspecto de borracha.

“Criamos um molde semelhante a uma forminha de gelatina, onde depositamos um polímero que vem líquido. Depois de certo tempo, com uso de temperatura, conseguimos destacar o polímero do molde e aí colocamos junto com os outros dispositivos [parte elétrica], para que as substâncias circulem. Então, pode ser um canalzinho simples, uma canaleta, mas também algumas ramificações”, detalha Juliana Novais.

Segundo ela, a ideia é fazer protótipos com processo de fabricação barato. “Uma proposta de baixo custo é bem importante, porque normalmente temos que pagar um instituto para fazer uma análise como essa, e aí ficamos emperrados na questão do preço”, comenta.

Os equipamentos atualmente utilizados na análise de amostras aquosas para detecção de pesticidas são grandes, pesados e caros, inclusive em sua manutenção. Assim, a pesquisa desenvolvida na UnB inova ao projetar uma tecnologia de baixo custo, portátil e que utiliza proteína bastante específica e nunca antes apropriada para esse fim. No caso do sensor de microplásticos, todo o aparato é uma novidade, pois até onde se sabe esse tipo de transdutor não existe.

INTERDISCIPLINARIDADE

A atuação integrada dos pesquisadores se fez imprescindível para criar uma solução inovadora e permitiu à equipe aprimorar suas habilidades.

“A possibilidade de utilizar conhecimentos da engenharia elétrica, somados ao que aprendi na computação e com inteligência artificial, foi o que mais me impulsionou: sair um pouco da ciência pela ciência, e atuar com a ciência aplicada ao dia a dia e que melhora a vida da sociedade como um todo”, conta Rômulo Santos, mestrando em Engenharia Elétrica.

Matheus Rotta, mestrando em Biologia Molecular, também se entusiasma ao colocar a ciência em prática. “Na graduação vemos muita teoria e, por vezes, pouca aplicação. Construir algo que tem aplicabilidade no mundo real, ainda mais unindo áreas diferentes, e conhecer mais a parte de fotônica é bem interessante.”

Já o mestrando Josaphat Desbas, aluno internacional na Engenharia Elétrica, se anima por trabalhar com algo que é alvo de preocupação mundial, como são os microplásticos. Ele enxerga no projeto finalidades ainda mais amplas do que o estudado até o momento.

“As aplicações são variadas: desde garantir a detecção de corpo não desejado no alimento ou bebida, podendo ser usado para verificar a qualidade de produtos como leite, suco em latas, verduras, remédios, e, com os ajustes adequados, pode ser aplicado no campo da Medicina (detecção de irregularidade no sangue, por exemplo)”, acredita o haitiano.

O projeto foi contemplado em 2021 com financiamento de R$ 394 mil da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) e sua conclusão está prevista para o final de 2023.

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