As várias mortes no mundo

Subtítulo ainda sem definição pela editora e design

Texto: Bruna Furlani e Nair Rabelo
Ilustrações: Francisco George Lopes

ENTRE INDÍGENAS, AFRICANOS OU EUROPEUS, OS RITUAIS FÚNEBRES FALAM MAIS SOBRE A VIDA DO QUE SOBRE O FIM DE TODOS

“Ninguém sabe o que é a morte, mas não faz muita diferença, porque também nunca sabemos o que é a vida.” A frase do escritor português António Lobo Antunes resume o sentimento coletivo de dúvida sobre os acontecimentos no pós-vida. Seria o fim? O retorno ao pó? O começo de uma nova fase ou uma experiência que atingiria apenas o corpo, ficando a consciência (ou alma) ativa?

De um jeito ou de outro, é na morte em que nos igualamos: é o destino comum a todos nós. A interpretação sobre o que acontece depois do passamento varia de acordo com a cultura, as crenças religiosas e pessoais. Os rituais fúnebres celebrados no país traduzem as várias tradições culturais que se mesclaram no Brasil.

O tema instiga pesquisadores de várias áreas do conhecimento, como Antropologia, Sociologia e História. É o caso de Loyanne Rocha, mestra em História Social pela UnB, que investigou os rituais de morte no século XVIII registrados na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto (MG). Os temores acerca do porvir e os cuidados fúnebres, contudo, não foram inaugurados nas terras brasileiras pelos colonizadores Europeus, muito menos pelas crenças cristãs.

Os povos originários também têm ritos, como é o caso da comunidade indígena sanöma, subgrupo dos Yanomami que vive na fronteira entre Brasil e Venezuela e é estudado pela professora de Antropologia da UnB Sílvia Guimarães. Estima-se que existam cerca de 6 mil índios sanöma (a pronúncia é sanâma), metade distribuída por 28 comunidades no lado brasileiro, e metade no país vizinho. O grupo encara a morte como um evento que envolve toda a aldeia e possui uma ritualística cuidadosa. A ideia é deixar o caminho livre de pendências para que a alma do falecido consiga fazer a “transformação” e seguir para o outro destino que o espera.

MAIS PERTO DO ALTAR, MAIS PRÓXIMO DE DEUS

No período colonial estudado pela historiadora Loyanne Rocha, a sociedade estava preocupada com o destino e a salvação da alma. Em um Brasil imerso no cristianismo importado da Europa, as preocupações sobre o destino da alma do morto implicavam rituais — e dinheiro. Neste contexto, a pesquisadora estava interessada em estudar como a população não branca (mestiços e africanos) se relacionava com os padrões fúnebres da sociedade europeia aplicados na colônia. Durante a dissertação, contudo, descobriu que o objeto de estudo era mais um híbrido entre práticas cristã-europeias e afro-religiosas.

Para garantir a salvação da alma, o local do enterro desempenhava papel fundamental, tanto que havia disputa pelos melhores lugares. Era comum sepultar as pessoas dentro das igrejas católicas. Nem o terreno sagrado ficava livre de distinções hierárquicas. Quanto mais perto do altar central, por exemplo, mais próxima a alma estaria dos santos e de Deus. Riqueza (ou falta dela) também influíam na localização geográfica do corpo.

Os mais ricos, em geral, ficavam com os melhores lugares na igreja, perto do altar. Já aos menos afortunados eram destinados locais de menor prestígio, próximos à porta ou bem na entrada do templo. As vestimentas do morto demandavam cuidado especial no dia do enterro. “Em Minas Gerais, as famílias se preocupavam em usar mortalhas ligadas às irmandades”, observou Loyanne, explicando que as irmandades eram associações ligadas à Igreja Católica, geralmente ao culto de um santo específico. Funcionavam como extensão da igreja, cuja presença oficial no Brasil não estava muito bem estabelecida.

A roupa de São Francisco era uma das preferidas, por representar a pobreza e humildade cristãs, virtudes apreciadas pelos fiéis. A escolha certa, acreditavam, poderia ajudar o morto a ter a alma salva. Para os sanöma, a lógica é outra: é necessário “botar fim à existência para liberar a pessoa para o mundo dos mortos”, comenta Sílvia Guimarães. Assim, tudo relacionado ao morto deve ser pulverizado. “Tudo que a pessoa mexeu, seus ossos, o que a lembra, os índios queimam. Eles pulverizam porque acreditam que fica uma parte da corporeidade da pessoa nas coisas.” Só assim a pessoa estaria livre para seguir caminho.

Nas Minas Gerais em pleno Brasil colonial, o roteiro das tarefas para garantir o bom destino da alma ainda exigia seguir os rituais de morte da época: lavagem do corpo, preparação com a roupa especial e acompanhamento do cortejo fúnebre. “Quanto mais pessoas, melhor. A morte era uma experiência coletiva e não individualizada. O cortejo era importante porque nele as pessoas mostravam sua posição social, o status dentro da sociedade”, descreve Loyanne.

O envolvimento da comunidade nos rituais fúnebres também é identificável nas práticas dos sanöma. A antropóloga Sílvia Guimarães conta que as cerimônias para esses indígenas se transformam em grandes festas, talvez comparáveis àquelas feitas pelos mexicanos no Dia dos Mortos. Sílvia descreve os rituais, que geralmente ocorrem na época da seca, como reuniões entre as comunidades vizinhas, com muita caça, comida, e itens para troca. “Os rituais são ancestrais e ainda configuram a grande festa estruturante para a vida deles. É potente para o sentido de pertencimento dos sanöma”, comenta. “É uma cerimônia única que acaba reproduzindo vida: reúne os vizinhos e cria redes de solidariedade. É, ao mesmo tempo, um momento de sofrimento e de comemoração, de reforçar os laços e estabelecer rede de trocas.”

Os rituais fúnebres dos sanöma são organizados pelos parentes do morto e pelos xamãs, que são líderes espirituais, religiosos e políticos. “A comunidade tem forte estrutura espiritual e respeito muito grande pelos xamãs, e isso não se desfaz. Desde os anos 1970, missionários que atuam na região tentam mudar os hábitos fúnebres dos sanöma, mas não conseguem”, conta a antropóloga.

Já para os mineiros, precaução era a palavra de ordem para garantir o destino tão almejado da boa morte, dado que havia costume de preparar o enterro com antecedência. Em casos de enfermos, na iminência da morte, era comum que as pessoas iniciassem as preces, não pela saúde, mas pela passagem, “para abreviar o sofrimento daquele que não conseguia morrer”.

Na esteira da organização da morte, fazer um testamento era fundamental, afinal, ali estavam expressas as últimas vontades. Muito mais do que um documento de sucessão de patrimônio, ele representava desejos de crenças religiosas. E isso era essencial, porque “as pessoas precisavam assegurar, aqui na Terra, o lugar celestial”. Também era um meio para acertar as pendências, fazer tificar que as dívidas seriam todas pagas. Com isso, teriam uma ida em paz. A historiadora pondera que, diferentemente da atualidade, a morte não era tabu no século XVIII. A sociedade do período colonial tinha presente a ideia de que existia uma proximidade muito grande entre vivos e mortos. “As pessoas estavam sempre se lembrando dos que já haviam partido”, diz Loyanne Rocha.

Muito diferente dos sanöma. Uma vez feito o longo ritual fúnebre, que pode levar mais de um ano, ocorre completo olvidamento do morto. Nem o nome volta a ser pronunciado na comunidade. Querem evitar que algo segure a pessoa no mundo dos vivos, impedindo-a de seguir para o próximo.

VINGANÇA, COMUNHÃO E ESQUECIMENTO

Para os sanöma, uma boa morte implica vingança. Isso porque creem que “nunca uma morte é por acaso. Eles costumam acreditar que quase todas as mortes ocorrem de forma intencional por uma pessoa ou por criaturas da floresta”, comenta a professora Sílvia Guimarães. Então, precisam acertar os pontos para poder começar o processo de esquecimento do morto.

Assim, a antropóloga explica que, durante o ritual fúnebre, a comunidade debate sobre possíveis culpados. E é aí que entram em ação os xamãs que, por meio de ritos, buscam respostas para as suspeitas. Não é incomum que o xamã “lance a culpa em um inimigo longínquo, o que requer a realização de vingança por meios xamanísticos ou procedimentos mágicos”. Assim, ele consegue afastar a suspeita de pessoas da própria comunidade e neutralizar tensões que podem ocorrer.

Na cerimônia funerária, chamada de sabonomo, o corpo é incinerado. Depois, os ossos são guardados para ser triturados e consumidos, numa mistura com mingau debanana feito especialmente para a ocasião. O processo envolve momentos de choro e de rememoração dos grandes feitos da pessoa que morreu. A ideia é resgatar a imagem do falecido para, então, poder esquecê-la.

Os rituais de vida e de morte são importantes para que a pessoa consiga concluir e finalizar a vida de forma tranquila e plena. E também porque representam o fechamento de um ciclo. A antropóloga ressalta que as cerimônias funerárias são relevantes para traçar a rede de apoio, de solidariedade que existe entre os grupos sanöma. No fim, como humanidade, temos muito em comum.

NÓS FAZEMOS CIÊNCIA

Quem são as pesquisadoras: Loyanne Dias Rocha é mestra em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da UnB e atua como professora da Educação Básica da Secretaria de Educação do Distrito Federal.

Silvia Guimarães é professora do Departamento de Antropologia, no Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde e no Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT). Ela agora foca os hábitos de vida da comunidade sanöma traduzidos nos padrões alimentares. Por meio de parceria entre a associação sanöma Ibasali (em referência a um dos primeiros sanöma cujo legado ancestral inspirou a constituição da associação) e a UnB, a docente delineia uma pesquisa para mapear a soberania alimentar da comunidade (sistema agrícola, pesca, caça e coleta), a fim de descobrir fragilidades e potencialidades e colaborar na proposição de soluções de saúde para o grupo.

 

 

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