Assédio se combate a todo momento
Nas escolas, no trabalho, na universidade. A violência moral está presente no dia a dia em diferentes espaços, sendo naturalizada e, por vezes, despercebida. Na contramão de tais práticas, iniciativas da UnB ajudam a tornar esses ambientes mais humanos e acolhedores
Texto: Thaíse Torres
Ilustração: Ana Rita Grilo/Secom UnB
Tina* não esperava gostar tanto de seu emprego quando assumiu cargo na Administração Pública Federal em 2016. O que encontrou na repartição fazia sentido para sua vida, e o concurso, que era para ser temporário, passou a trazer alegria no seu cotidiano. “Via sentido no que fazia”, afirma. Hoje, passados cinco anos, ela faz acompanhamento psicoterápico em virtude do sofrimento causado pelo trabalho. “Não sabia mais como lidar com isso. Achava que o problema era meu, mas hoje percebo que meus colegas e eu estamos em situações clássicas de assédio moral, e isso vem drenando meu prazer de trabalhar”, conta.
Histórias como a de Tina repetem-se diariamente em todos os tipos de ambientes laborais. “A eliminação do outro e o poder sobre o outro é um reflexo da questão da performance do sujeito no contexto do neoliberalismo”, explica Flávia Beleza, coordenadora executiva do projeto Estudar Em Paz – Mediação Social Transformadora, abrigado, na Universidade de Brasília (UnB), pelo Núcleo de Estudos da Paz (NEP) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam).
Flávia, que é doutoranda em Educação na UnB, estuda a resolução de conflitos e como transformá-los por meio da mediação, ou seja, com intervenção de um terceiro capacitado que suscita o diálogo entre os envolvidos. Desde a graduação, sabia que queria trabalhar com iniciativas que possibilitassem aos próprios indivíduos a solução destes impasses. Em 2009, contribuiu para criar o projeto, que proporciona a formação em mediação de conflitos em escolas do Distrito Federal. Este é também objeto de estudo em seu doutorado.
Inicialmente, a oferta era voltada a estudantes do ensino básico. Hoje, estende-se a educadores da Secretaria de Educação do DF (SEEDF), por meio da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação (Eape). Os participantes tornam-se multiplicadores de ideias e, quando no mercado de trabalho, poderão contribuir para diminuir a incidência das violências laborais.
“Percebemos ânsia por resolver e transformar conflitos, principalmente entre as crianças. Os adultos, muitas vezes, já estão adoecidos e acham que não vai dar certo tentar mudar algo”, afirma Flávia. Uma das primeiras escolas em que ela atuou, o Centro Educacional São Francisco, em São Sebastião, região administrativa do DF, passou por grande mudança na qualidade das relações sociais e redução da violência durante e após o contato com a mediação.
Leísa Sasso, ex-diretora do colégio, conta que a instituição aproveitou as lideranças já existentes e as instrumentalizou com diálogo conciliador e escuta sensível. Para ela, essas habilidades são essenciais para a vida em sociedade e para o ambiente laboral, e ajudam a coibir as violências e discriminações.
“Dessa forma, ampliamos o exercício do diálogo, ultrapassando os muros da escola em direção às famílias, transitando pela sociedade”, lembra. “Quando existe um ambiente que é caro a um conjunto de pessoas e quando se busca pertencimento e acolhida, a mediação, tanto social quanto cultural, encontra espaço para atuar trazendo pacificação, respeito e tolerância”, acrescenta Leísa, que também é egressa do Programa de Pós-Graduação em Artes da UnB.
Gracianni Nunes, orientadora educacional da SEEDF e ex-aluna do curso oferecido pela Eape, leva o que aprendeu para todas as escolas por onde passa. Ela explica que o projeto mostra violências que frequentemente são naturalizadas. “Muitas vezes a gente nem se reconhece como produtor dessas violências. Essa desmistificação e desnaturalização já contribui para o combate.”
Ela acredita que o contato com a mediação pode ajudar a diminuir tais situações, principalmente quando se criam articulações coletivas. “As pessoas envolvidas passam a ter voz e protagonismo. Reconhecemos o ambiente e as violências que nele ocorrem e paramos para pensar, sobretudo, nas naturalizadas. O assédio acontece principalmente em relação a mulheres, grupos LGBT e negros. São violências por vezes muito sutis”, lembra.
O direito explica
A Organização Mundial do Trabalho (OIT) reconhece a urgência de combater o assédio e as violências no ambiente laboral. Em junho de 2021, entrou em vigor a Convenção nº 190 da OIT, primeiro tratado internacional com essa finalidade. No Brasil, ainda que ela não tenha sido ratificada e que não haja definição exata de assédio moral na legislação, há dispositivos constitucionais que protegem o trabalhador e buscam reforçar direitos fundamentais, como dignidade, honra e saúde, no ambiente onde ele está inserido.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UnB, Renata Dutra afirma que tanto a literatura jurídica quanto as decisões proferidas pelos tribunais – a jurisprudência – já identificam, conceituam e repudiam o assédio e as violências no trabalho.
Renata explica que, apesar disso, chefias hostis e práticas agressivas de gestão continuam a ser recorrentes. Ela exemplifica o caso de operadores de telemarketing, profissionais com alto índice de rotatividade, que sofrem muitas vezes com práticas humilhantes e consequente adoecimento mental. “Nos processos que analisei, podemos observar chacotas com membros da equipe como dinâmica da gestão. Esse processo, que é chamado de momento de descontração, caracteriza, na verdade, humilhação.”
Outro caso emblemático é o estabelecimento de metas que um percentual mínimo da equipe consegue alcançar. “Se a meta é impossível, ela dissocia-se de um sentido ético e acaba por produzir sofrimento”, afirma Renata.
Esse tipo de ato muitas vezes cria armadilhas para o trabalhador, que acaba por viver para e pelo trabalho, na visão da doutoranda do PPGD e servidora da Justiça do Trabalho Valéria Dias. Interessada nos processos de saúde e de adoecimento no trabalho, foi uma situação de assédio moral organizacional que a motivou a estudar tal prática e outras violências laborais.
Durante o mestrado, Valéria decidiu analisar processos de afastamento de bancários, uma das categorias mais afetadas pelo assédio organizacional. Esta violência acontece quando as práticas da organização tornam o assédio recorrente nos comportamentos e nas relações laborais.
“Percebi que o foco das ações de prevenção deveria ser nas práticas organizacionais, não na pessoa. Esses ambientes são focados intensamente no produtivismo e essa dinâmica coloca um colega contra o outro, adoecendo o coletivo”, frisa.
A pesquisa de Valéria revela que certos benefícios oferecidos pelos bancos à categoria, como a participação em lucros e resultados, aumentam a competitividade e a rivalidade entre os colegas, pressionando aqueles que não elevam a produtividade e culpando-os pela queda na receita.
Outro aspecto importante é o tipo de vínculo empregatício das pessoas que procuram reparação na Justiça do Trabalho: quem não tem estabilidade no emprego espera o encerramento do contrato para acioná-la.
As dinâmicas de trabalho a que esses empregados estão sujeitos os intimidam nessa busca. Assim, 57% desses trabalhadores já tinham o vínculo extinto, 33% tinham o contrato suspenso e apenas 3% entraram com ações ainda ativos.
Valéria percebeu, ainda, analisando as decisões da Justiça do Trabalho do Distrito Federal, que a maioria das sentenças do DF ainda não reconhece que o modelo de gestão adotado pelos bancos é o gerador do assédio, focando-se nas relações entre indivíduos.
Além disso, 72% dessas ações foram propostas por mulheres e elas são as que mais procuram o serviço de escuta clínica para tratar o adoecimento em decorrência do trabalho.
E a psicologia?
Estudos realizados entre 2007 e 2018 pelo Laboratório de Psicodinâmica e Clínica do Trabalho (LPCT/UnB) demonstram que saúde mental e trabalho estão conectados. “A forma com que o trabalho é organizado pode levar o sujeito a vivências de prazer ou de sofrimento patogênico”, afirma Valéria Dias. Grande parte do arcabouço teórico da dissertação da pesquisadora foi desenvolvido no LPCT, coordenado pela professora do Instituto de Psicologia (IP) da UnB Ana Magnólia Mendes.
“Já desenvolvia estudos na área quando uma profissional de saúde, vítima de assédio moral, me procurou para conversar. Ela queria falar sobre seu sofrimento, estava familiarizada com meu trabalho e me pediu para ser escutada”, conta Ana Magnólia, que também é coordenadora do Núcleo Trabalho, Psicanálise e Crítica Social. Ela ficou impressionada com o pedido de socorro. “Me ajude a sair dessa situação”, disse a trabalhadora enquanto tirava de dentro da bolsa cópias impressas dos artigos publicados pela professora. A partir daí, a docente convidou uma orientanda de mestrado, que atuava com a clínica de trabalho, para escutar a profissional de saúde. Dali saiu o primeiro artigo escrito no país a partir de caso de coleta de dados de escuta direta do paciente.
A docente do IP trabalha com a temática há mais de 30 anos e acredita que as escutas realizadas no projeto trouxeram algo de que sentia falta na abordagem teórica. “Eu tinha essa inquietação sobre a ineficácia do método, e essa virada metodológica foi fundamental para a pesquisa clínica e o tratamento dos trabalhadores adoecidos”, explica.
Hoje, a busca pela escuta clínica no LPCT é espontânea. Os atendimentos são para todas as pessoas, independente de faixa salarial ou área de atuação. “Temos pacientes com alta renda, mas que nos buscam pelo conhecimento especializado”, relata Ana Magnólia. A duração vai da necessidade de cada paciente. “Investigamos, durante esse processo, a potência da escuta para o trabalhador e sua cura.”
Academia atenta
Na UnB, um grupo de trabalho (GT) foi instituído para elaborar proposta de Plano de Combate ao Assédio Moral e a Outras Violências no Trabalho. A iniciativa visa desdobrar o tema para além das pesquisas e laboratórios, propondo uma forma de lidar com as violências laborais no ambiente acadêmico.
O GT reúne representantes de diversas áreas e segmentos universitários, incluindo especialistas, e tem envidado esforços para acolher as demandas e desnaturalizar violências cotidianas que, muitas vezes, passam despercebidas.
Uma das propostas é a criação de uma rede que promova a humanização e trate as violências em suas raízes. A partir deste trabalho, espera-se reduzir situações como as vividas por Paula*, por exemplo. A hoje mestranda da Universidade relata que, em seu último semestre de graduação, já com planos profissionais prontos, ouviu da orientadora que nunca conseguiria trabalhar onde gostaria. A fala da professora somou-se a uma série de comentários sarcásticos que a minimizavam, além de um ar de superioridade sempre presente.
“Depois de quatro anos e de passar por muitas coisas, a professora, rindo na minha cara, falou praticamente ‘joga fora esses quatro anos de estudo porque isso não vai adiantar de nada para os seus sonhos.” A junção de problemas familiares e um quadro de depressão fizeram com que a estudante preferisse deixar para outro momento o projeto com a docente.
Outras situações constrangedoras, inclusive de humilhação diante de colegas, também marcaram a trajetória de Paula no mestrado. O quadro é repetido por outros estudantes que ouvem as agressões e os assédios com a justificativa de que “o mundo é assim mesmo”.
Algumas dessas situações coincidem na sala de aula e nas relações de subordinação: falta de orientação e silêncio do orientador ou gestor, seguidos de cobranças; isolamento; e uso de um indivíduo como exemplo negativo diante dos outros colegas. O orientador de Paula, por exemplo, não responde às dúvidas enviadas por e-mails e, quando dá notícias, cobra algo que ela não sabia que deveria fazer. “Eu me sinto muito mal fazendo meu mestrado, mas não queria mudar de orientador, porque é o único que trabalha na área onde pretendo seguir carreira”, desabafa.
Depoimentos dados em anonimato à Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) trazem realidades desanimadoras. “Vou terminar graças aos meus amigos e à minha mãe. Mas me arrependo muito pela escolha da vida acadêmica. Ambiente classista, sexista, competitivo e que se faz de surdo”; “Tenho transtorno de ansiedade, depressão e síndrome do pânico”; “Desenvolvi gastrite nervosa no doutorado”.
“Tanto o assédio moral interpessoal quanto o assédio organizacional violam a dignidade humana do sujeito assediado e do coletivo de trabalhadores que presenciam o assédio”, lembra a pesquisadora Valéria Dias, que é também uma das convidadas do GT.
A proposta de plano do grupo unifica outras elaboradas setorialmente na Universidade e busca, por meio de um olhar cuidadoso e acolhedor, criar um ambiente dialógico e participativo, onde casos como os de Paula, Tina e tantos outros não sejam mais rotineiros. O GT também estabeleceu um fluxo de acolhimento das demandas e denúncias dentro da Universidade e formulou material educativo sobre o tema.
“O trabalho do grupo representa um marco em direção à construção de relações humanas saudáveis. Nossa expectativa é a de apontar formas de acolhimento das pessoas, além de mecanismos de coerção de práticas abusivas”, frisa a decana de Gestão de Pessoas da UnB, Maria do Socorro Gomes, presidente do GT. O plano será apresentado ainda este ano a instâncias superiores da Universidade para aprovação.
*Tina e Paula são nomes fictícios usados a pedido das entrevistadas, que preferiram não se identificar.