Caminhos do saber
Professores e estudantes da Universidade de Brasília mantêm acesa a chama do pensamento freiriano em diversas áreas do conhecimento
Texto: Bianca Mingote
Ilustração: Francisco George Lopes a partir de fotos da Secom/UnB
Emancipação, diálogo, libertação, autonomia são palavras-chave para aplicar a filosofia de Paulo Freire na práxis científica. As contribuições do educador vão além da metodologia desenvolvida para a alfabetização de jovens e adultos, pois fomenta o pensamento crítico e respeita a singularidade cultural. Conheça alguns dos projetos e pesquisas da Universidade de Brasília pautados na concepção freiriana.
Educação popular
Aos 55 anos, a piauense Lucimar Nascimento dá o exemplo de que nunca é tarde para sonhar. Sua juventude foi marcada pela falta de oportunidades, inclusive a de estudar. Em busca de melhores condições de vida, a nordestina veio para Brasília em 2014 e fincou raízes em Ceilândia, maior região administrativa do Distrito Federal. Foi ali que, aos 52 anos, ela se viu escrevendo uma nova história.
“Meu grau em relação à leitura era muito pouco. Hoje eu já sei ler. Sei muita coisa que antes não sabia. Me sinto privilegiada pela pessoa que estou me tornando e pelo que estou aprendendo”, conta Lucimar, que foi alfabetizada no Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia (Cepafre) e hoje sonha em ser enfermeira.
O Cepafre é uma instituição sem fins lucrativos que atua em oito áreas educativas, sendo a principal frente na alfabetização de jovens, adultos e idosos. A unidade estima já ter letrado 16 mil pessoas. “A alfabetização é um pontapé inicial de conscientização. Mas temos vários campos de lutas, todos embasados nos princípios freirianos”, detalha a primeira presidente do Cepafre, Madalena Torres.
Fundado oficialmente em 1989, o Cepafre teve início em 1985, quando estudantes da extinta Escola Normal de Ceilândia e cinco mestrandos da Faculdade de Educação (FE) da UnB iniciaram uma experiência de alfabetização de adultos baseada na metodologia freiriana. Os acadêmicos eram: Erasto Fortes Mendonça, Laura Maria Coutinho, Ana Maria Jacobino, Maria Luiza Pinho Pereira e Renato Hilário – quatro deles, hoje, são docentes aposentados da FE.
Desde então, a UnB segue parceira do Cepafre, contribuindo para que pessoas como a Lucimar possam ler, (re)escrever e contar suas histórias de vida. A parceria é um incentivo para a instituição, que não tem sede própria e depende das doações de associados e colaboradores.
“A falta de recursos dificulta muito o trabalho, mas com organização, dedicação e determinação conseguimos manter o trabalho vivo”, enfatiza Danielle Estrela, vice-presidente do Cepafre, educadora popular em Ceilândia e professora da rede municipal de educação de Cristalina, em Goiás.
“Nós resistimos tendo como diferencial o apoio sempre presente da Universidade de Brasília e da própria população”, acrescenta Madalena Torres, que em 2019 foi agraciada com título de Cidadã Honorária de Brasília em reconhecimento à trajetória dedicada à educação popular e à alfabetização de jovens e adultos no DF.
O sonho da educadora é “ver as pessoas alfabetizadas, continuando os estudos”. Trajetórias como a de Lucimar confirmam que o ideário de Madalena Torres já é realidade. “Através do Cepafre hoje estou em uma escola, na sétima série. Tenho aprendido muita coisa. Me sinto excelente em tudo, na maneira de me expressar, e quero aprender mais ainda”, compartilha.
Pegadas de Paulo Freire na capital
A última vez que Paulo Freire esteve no Distrito Federal foi em 30 de agosto de 1996, cerca de oito meses antes de sua morte. Na ocasião, o educador deixou suas mãos moldadas em uma placa de cimento feita por Valdivino Ferreira da Silva, um pedreiro alfabetizado pelo método freiriano. É possível apreciar a placa, guardada e conservada com muito zelo nas dependências do Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia (Cepafre).
Essa e outras curiosidades são resgatadas no artigo Presença e pegadas de Paulo Freire no Distrito Federal: uma primeira aproximação, publicado em 2012 e que será desdobrado em novo artigo, cujas pesquisas estão em andamento. O estudo analisa três momentos em que o educador esteve no DF: o início dos anos 1960 e as décadas de 1980 e 1990. Já a nova publicação abordará descobertas históricas anteriores a 1960, baseada em achados localizados no Museu da Educação do Distrito Federal (Mude) – que tem sede provisória no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam) da UnB.
“A UnB tem, em sua história, Paulo Freire como membro de seu conselho diretor do início dos anos 1980 até 1991. Por conta disso, ele vinha à cidade e à UnB. Vemos bem registrado na história de Angicos o começo do trabalho dele, mas sua presença em Brasília fica com um lapso de memória que buscamos recuperar”, avalia o educador popular e professor da FE Erlando Rêses, coautor da pesquisa.
A metodologia do estudo envolve análise documental, pesquisa histórica e resgate de memórias daqueles que conviveram com Paulo Freire no DF. A produção também analisa como as concepções freirianas foram integrando-se à formação de educadores e à prática educativa na cidade.
Erlando Rêses compartilha que trilhar os passos de Paulo Freire na capital federal vai além da ideia de expandir o conhecimento sobre o educador. “Fazer esse caminho nos dá muita satisfação. Temos interesse em que mais pessoas o conheçam e vejam sua singularidade como ser humano, enquanto educador preocupado com as classes populares e com a alfabetização.”
Oficinas colaborativas em ciências
Já imaginou aprender ciência usando vela, bexiga ou secador de cabelo? Com auxílio desses objetos é possível explicar para alunos da educação básica princípios físicos e químicos que compõem fenômenos científicos, além de romper obstáculos epistemológicos e estimular o diálogo entre educando e professor.
Para apoiar professores na adoção dessas práticas, Gabriel Baudson, docente da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), desenvolveu um guia para imersão em experimentos científicos que podem ser reproduzidos em sala de aula. O material foi concebido em oficinas colaborativas com participação de profissionais da SEEDF, e resultou da pesquisa de mestrado de Baudson pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências do Instituto de Química da UnB.
Nas oficinas foram desenvolvidos vários Objetos Científicos Interativos (OCI) – peças manuseáveis utilizadas com o objetivo de aplicar conceitos de ciência no processo de aprendizagem dos estudantes. Um exemplo é o uso de secador de cabelo e de uma bola de isopor para explicar o princípio de Bernoulli e o efeito Coandã – conceitos presentes no conteúdo de hidrodinâmica, trabalhado durante o ensino médio.
Baudson explica que os OCI são caracterizados pelas dimensões de dialogicidade, ludicidade e interatividade. Por isso, eles estimulam a investigação científica e a curiosidade, ou seja, aproximam o saber científico ao cotidiano popular. “São dimensões que incorporam os requisitos que Freire colocou para a prática de educar para liberdade: o diálogo, a horizontalidade das relações, o protagonismo, a humildade, a fé de que cada encontro e cada colaboração podem ser transformadoras”, aponta.
Segundo Cássio Laranjeiras, docente do Instituto de Física e orientador da pesquisa, as oficinas foram propostas para “romper com um círculo vicioso presente no processo formativo de educadores [referente ao que Paulo Freire chamou de educação bancária], estabelecendo o diálogo como elemento central e estruturador do processo de conhecimento”.
Educação ambiental crítica
Sem a pretensão de emergir fórmulas mágicas para a problemática da educação ambiental, a professora da SEEDF Adriana Arrais investigou a realidade de escolas sustentáveis da rede pública de ensino no país. Ela buscou compreender de que forma os eixos escolares currículo, gestão e espaço físico, quando articulados às concepções de Paulo Freire, podem resultar em uma educação crítica ambiental.
O processo de pesquisa, além de usar o aporte teórico de Paulo Freire, contou com o trabalho de campo pautado no dialogismo com as comunidades escolares. “Para assim compreender as suas realidades e com isso identificar os distanciamentos e aproximações em relação ao pensamento freiriano”, expõe Adriana Arrais.
A pesquisa teve início no final de 2019, mas, devido à pandemia, só foi possível concluir o levantamento de dados de duas escolas: a Cariri e a Jardim Floresta – ambas com nomes fictícios para preservar as respectivas comunidades escolares. Os resultados mostram que a escola Cariri se relaciona com a concepção freiriana em aspectos de autonomia, democracia, diálogo, formação de sujeitos críticos, entre outros. O fato não se repete na escola Jardim Floresta.
“O senso de pertencimento dos sujeitos da escola Cariri contribui para que os seus atores sociais busquem não só a compreensão da sua realidade, mas também a sua transformação por meio de uma luta coletiva, democrática e política”, observa.
A conclusão aponta que a junção dos três eixos embasados pela filosofia de Paulo Freire potencializa a manutenção de escolas sustentáveis cuja prioridade é a extensão crítica da educação ambiental. “Os elementos freirianos tornam-se indicadores que podem auxiliar a (re)pensar a ambientalização desses espaços educadores sustentáveis”, explica a professora. Ademais, “quanto maior a aproximação com esses aspectos freirianos, maior é o senso de pertencimento dos estudantes”, frisa.
O trabalho tem potencial para contribuir na “formulação e implementação de ações, projetos, programas e até políticas públicas que sejam comprometidas com esses espaços educadores”, destaca Adriana Arrais.
Diálogo libertador
Um convite à convivência e à transformação coletiva. É assim que Zora Yonara, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB, define as Rodas de Conversa Paulo Freire 2021 – fortalecendo elos entre educação e serviço social.
Configurado como curso de extensão, as rodas possibilitam a troca de saberes entre professores, estudantes de graduação e de pós-graduação do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação e Discriminação (TEDis). Entre os objetivos está a elaboração coletiva de estratégias de políticas educacionais, além do resgate das contribuições de Paulo Freire nas áreas da educação e do serviço social.
“A iniciativa possibilitou reunir experiências, pessoas, estudos e diálogos. A transformação é coletiva e promove trocas de saberes entre a Universidade e a comunidade. Para mim foi um convite à convivência”, expressa Yonara. Devido à pandemia, os encontros são virtuais, o que acabou fortalecendo a iniciativa ao possibilitar participações internacionais e somar inscritos de 23 estados brasileiros.
Nita Freire, viúva e biógrafa de Paulo Freire, concedeu uma entrevista ao projeto. A cada encontro um trecho da conversa é compartilhado com os participantes. As organizadoras das rodas relatam que é emocionante ter essa contribuição, para abordar a vida e obra do educador.
Nas rodas todos são livres para se manifestar e compartilhar com o grupo considerações sobre a obra e o legado do educador. O TEDis deu início aos trabalhos em comemoração ao centenário de Paulo Freire em 2019, com cinco rodas de conversa de forma presencial. Em 2021, seis encontros virtuais foram programados entre março e setembro, contemplando temáticas como assistência estudantil, serviço social na educação básica, socioeducação.
“As rodas com certeza contribuíram de modo tocante, este foi um momento que deu sentido às pesquisas, uma forma de partilhar e isso cria a possibilidade de construção. Como dizia Paulo Freire: ‘As pessoas se libertam em comunhão’, e as rodas nos possibilitaram esta libertação que é coletiva”, garante Zora Yonara.
Paulo Freire não morreu
Um levantamento sobre dissertações de mestrado e teses de doutorado na área de saúde produzidas ao longo de uma década (2004 a 2014) atesta que as contribuições de Paulo Freire permanecem vivas em diversas áreas do conhecimento. O estudo foi realizado por Natália Fernandes, sanitarista e graduanda em Pedagogia, no âmbito do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Saúde Coletiva da Faculdade UnB Ceilândia.
“Eu imaginava que Paulo Freire só abordaria eixos da educação da saúde e me deparei com um mundo muito maior. Percebi que a educação vai bem além da sala de aula e com ela podemos mudar muitos comportamentos e dados na saúde”, comenta Natália Fernandes sobre a monografia concluída em 2015.
A linha de pesquisa era inédita até então, conforme explica a professora Clélia Parreira. “Embora Paulo Freire não tenha discutido saúde na sua produção, ele tem muita influência no nosso campo desde a década de 1970 com a chegada dos movimentos populares em defesa da saúde e contribuindo, inclusive, na formação de lideranças comunitária. Nós discutimos muito isso na disciplina Fundamentos da Educação em Saúde.”
A disciplina, que foi decisiva na escolha de Natália Fernandes sobre o tema de pesquisa, segue sendo ofertada para outros estudantes da Universidade. “A aula nos fornece noção de questões como autonomia do cuidado, fazendo com que cada indivíduo se torne o centro do seu próprio cuidar. Aborda a relação de troca, na qual não é preciso usar um jaleco ou ter formação superior para compartilhar conhecimento”, aprecia a sanitarista, que agora cursa Pedagogia como segunda graduação.