Educar para libertar
Paulo Freire pensou a educação como uma prática para a liberdade, perspectiva que torna sua obra atual, inovadora e referência nas principais universidades do Brasil e do mundo
Texto: Isabel Dourado e Vanessa Vieira
Ilustração: Francisco George Lopes a partir de arte de Francisco Brennand
Uma concepção comprometida com a defesa da educação crítica, democrática e emancipadora. Este é o legado do educador Paulo Freire, dedicado por ele “aos esfarrapados do mundo e aos que com eles sofrem”, como registra a epígrafe escrita a próprio punho no manuscrito original de Pedagogia do oprimido, obra mais citada no mundo na área da educação e a terceira em ciências sociais segundo dados do Google Scholar.
Apesar de ser muito conhecido por seu método de alfabetização de jovens e adultos, é essa perspectiva acerca do papel da educação que tornou o pernambucano, nascido em Recife, referência nas principais universidades do mundo. Há centro de estudos sobre sua obra em países, como África do Sul, Alemanha, Áustria, Canadá, Estados Unidos, Finlândia, Holanda, Inglaterra e Portugal.
“Seu compromisso é com a prática da liberdade e isso vai muito além do campo da alfabetização de adultos, que é onde ele começou, e da própria área da educação. O legado de Paulo Freire é com essa educação comprometida com a transformação social”, aponta Venício Artur de Lima, autor das obras Paulo Freire – A prática da liberdade, para além da alfabetização e Comunicação e cultura: as ideias de Paulo Freire.
Professor emérito da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, ele explica que a proposta do pensador é conhecida como “libertadora” porque “parte do princípio de que o educando descobre a si mesmo no processo de educação e, portanto, toma consciência da sua situação, se vê como uma pessoa capaz de transformar o mundo e se compromete com essa transformação”.
Educação democrática
De autoria de Freire, a célebre frase “a educação é um ato político” sintetiza parte importante de seu pensamento, que se baseia na perspectiva de que não há prática educativa indiferente a valores ou a um projeto de sociedade.
“A educação democrática, para ele, emerge do clamor e da luta de classes inferiores pautados nas ideias de liberdade e de igualdade de direitos. Na perspectiva freiriana, a educação humanizadora somente se realiza com e na presença de uma ação democrática”, explica Renato Hilário, professor da Faculdade de Educação (FE) da UnB e pesquisador na área de educação de jovens e adultos.
O docente esclarece que esta proposta está enraizada “na ideia de que cada sujeito tem vez, voz e capacidade de decisão. Então, não são alguns decidindo para todos e todas. São todos e todas decidindo pelo coletivo”. Por esta razão, diz ele, “a práxis pedagógica proposta por Freire deve ser sempre no plural”.
A dimensão emancipadora está presente na filosofia de Paulo Freire desde suas primeiras grandes obras. É o caso do ensaio Educação como prática de liberdade, publicado em 1967, durante seu exílio no Chile. Nele, o educador sinaliza para uma práxis educativa voltada à justiça social e aos direitos humanos.
“O projeto de Paulo Freire era a fundamentação de um Direito Achado na Rua, o direito que traduz a dimensão autônoma da pedagogia como formação da cidadania e do emancipar-se”, declara José Geraldo de Sousa Junior, docente da Faculdade de Direito e ex-reitor da UnB, referência no Direito Achado na Rua – concepção teórica que embasa noções de Direito em conceitos como liberdade e emancipação.
Na visão do professor, a filosofia freiriana diferencia-se pela busca da autonomia dos sujeitos e por ter como núcleo da educação a dimensão conscientizadora. “A metodologia dele leva em conta abrir a consciência dos subalternos para que eles se deem conta das opressões que reduzem sua dignidade e se organizem politicamente para transformar a realidade, autonomizar-se e tornar-se sujeitos.”
Docente da FE e pesquisador em currículo, didática e formação de professores, Francisco Thiago da Silva completa que as dimensões de autonomia e empoderamento dos indivíduos foram pensadas por Paulo Freire como um caminho para contrapor estruturas autoritárias e fomentar igualdade social.
“A essência do pensamento freiriano é baseada em uma postura de diálogo, emancipação do sujeito, educação libertadora e democrática. Ele era contra qualquer ideia de exclusão e preconceito. Na sua visão, a falta de acesso a um ensino de qualidade era uma das causas para a perpetuação de desigualdades”, sinaliza.
Gênese do pensamento freiriano
Grande parte da obra de Paulo Freire foi publicada originalmente entre as décadas de 1960 e 1980. É o caso de Pedagogia do oprimido, seu título mais conhecido, lançado como livro em 1970, por meio de uma edição norte-americana publicada a partir de cópia dos originais. O manuscrito foi produzido em 1968, durante seu exílio no Chile.
Ideias como as presentes nesta obra ganharam corpo com a influência de intelectuais do Brasil e de outros países latino-americanos. “Seu pensamento foi formado em um contexto revolucionário. Era uma época em que se tinha a esperança de ser possível romper uma tradição secular de injustiças e desigualdade, com a presença de vários movimentos sociais em diversos países da América Latina”, contextualiza Venício Lima.
Ele aponta que uma contribuição significativa na concepção freiriana veio dos pensadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Criado em 1955, no Rio de Janeiro, o Iseb foi um centro de conhecimento que promoveu o desenvolvimento nacional, alcançando especial destaque no governo de Juscelino Kubitschek. Sua extinção aconteceu em 1964, com a instauração do regime militar.
“Alguns autores importantes do Iseb tiveram influência direta no pensamento de Paulo Freire. Na área de sociologia, por exemplo, tem o Alberto Guerreiro Ramos. Quando o educador formula seu conceito de cultura do silêncio, ele recorre a uma corrente de pensamento da qual Guerreiro Ramos fazia parte”, esclarece o professor emérito.
Outra herança veio de Álvaro Vieira Pinto, “um dos mais importantes filósofos do Iseb com quem Paulo teve muita proximidade, e que o influenciou de várias formas, principalmente do ponto de vista filosófico, na visão existencialista do ser humano”.
Ideias do filósofo espanhol Eduardo Nicol também permeiam a obra do educador pernambucano. “Nicol propunha que ‘não existe pensamento isolado’. Embebido nesse conceito, Paulo Freire irá argumentar que não existe um ‘eu penso’, mas sim, ‘nós pensamos’. Ou seja, o pensamento estará baseado no coletivo”, detalha Venício Lima em seu livro.
Dessa contribuição filosófica, surge a conhecida frase de Paulo Freire, registrada em Pedagogia do oprimido: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Na família, o pensador também teve importantes referências. Com a mãe, Edeltrudes Neves Freire, ele aprendeu a ler e conheceu os princípios da religião católica que permearam sua trajetória de vida. A perspectiva religiosa veio, ainda, de influência, da Teologia da Libertação – corrente de pensamento surgida, a partir de 1960, na América Latina, junto a movimentos políticos libertadores, pautada na emancipação social, econômica e política. “Ele se associou indiretamente à Teologia da Libertação porque sempre foi cristão. E foi um cristão na perspectiva da libertação humana”, comenta Venício Lima.
Já com a primeira esposa, Elza Freire, que também era professora, o pernambucano foi estimulado a compreender a necessidade de alfabetização que partisse do aprendiz. “Elza foi fundamental na constituição inicial de seu pensamento, e ele dizia isso várias vezes. Ela foi a pessoa que sustentou a família, porque Paulo era um camarada que estava na militância do pensamento dele. Sua centralidade foi indiscutível, Paulo Freire reconhecia isso”, conta o professor sobre as declarações que ouviu do próprio educador, de quem se tornou amigo pelas afinidades filosóficas.
Pensamento crítico X modelo bancário
Avesso ao modelo tradicional de educação, tido por ele como “alienante e opressor”, Paulo Freire defendeu uma prática educativa que permita ao indivíduo sair de um “estado de tutela e de opressão” e desenvolver uma “leitura crítica do mundo”.
Essa abordagem teve influência intelectual pulsante da psicóloga e pedagoga argentina Emilia Beatriz María Ferreiro Schavi. Com amplo envolvimento na área de alfabetização, ela repudiava as formas tarefeiras de ensinar, as quais excluíam o protagonismo do aluno no processo. Em sua produção, Paulo Freire designou essa prática de “educação bancária”.
“É a forma de ensino na qual o aluno é visto como passivo e apenas receptor do conteúdo ensinado, sem a existência de uma autonomia. Nessa proposta, o professor é o único detentor de conhecimento, gerando um ambiente de opressão”, descreve Renato Hilário.
Contrapondo este modelo, Paulo Freire propôs uma pedagogia na qual “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. “Seu pensamento tem uma base revolucionária, crítica e progressista, que, acima de tudo, defende a libertação do sujeito por meio da alfabetização. Mas não é uma alfabetização ligada apenas à perspectiva de letramento social, e sim uma alfabetização do mundo”, explica Francisco Thiago.
A reconfiguração do espaço de aprendizado é uma das práticas que chama atenção em sua metodologia. “Diferentemente da sala de aula tradicional, as cadeiras são dispostas em círculo, e não em fileiras. É uma perspectiva baseada no diálogo, em que ninguém sabe mais do que o outro. Todos os saberes importam”, detalha o docente sobre os círculos de cultura.
Ele avalia que o ato educativo, na obra freiriana, é revestido pela crença inabalável nas riquezas do outro, ainda que em situação de opressão. E aponta, ainda, como cerne das ideias do educador, a problematização dos ensinamentos para produzir um saber transformador. “Os sujeitos submetidos a uma educação tradicional também estão sendo oprimidos, pois para emancipar-se é preciso pensar por si só e fazer uma leitura crítica do mundo.”
Para Renato Hilário, os princípios do que seria uma educação bancária ainda permeiam o modelo atual de ensino. “Isso danifica as possibilidades de que os estudantes desenvolvam suas faculdades críticas e de que compreendam a dinâmica dos conflitos que se estabelecem entre o ideal de uma sociedade que defenda os valores de democracia, liberdade e igualdade e a realidade social construída sobre os pilares de escravidão, racismo, exploração, genocídio e exclusão social.”
Contribuições atuais
As décadas transcorridas desde a publicação das principais obras de Freire não diminuíram a atualidade de seu pensamento, presente, por exemplo, em programas nacionais de educação, como o Brasil Alfabetizado, que visa a superação do analfabetismo entre jovens, adultos e idosos. Apesar da repercussão em iniciativas governamentais, José Geraldo avalia que o Brasil ainda não atingiu uma educação democrática e igualitária.
“Nossa sociedade não venceu os limites de hierarquia que se estruturam sobre as formas dramáticas de exclusão. Não se emancipou disso. Basta ver o debate atual com uma retomada das modelagens neoliberais e de hostilidade à cultura. Há muita oposição ao pensamento crítico, que é o pensamento da educação para a emancipação”, avalia ele, que é também pesquisador em direitos humanos e cidadania.
No modelo atual, “a educação é, de certo modo, adestramento, conformismo e não autonomia”, aponta o docente. Já a concepção freiriana seria, em sua visão, um “horizonte utópico”, mas que, por meio das “lutas sociais por emancipação”, pode mover a sociedade a buscar “uma educação apta a transformar as estruturas de alienação”.
Na opinião do educador Renato Hilário, “o paradigma tradicional de educação, nas reflexões de Freire, reflete a sociedade opressora e preconiza uma cultura pautada no silêncio”. Ele acredita que a educação atual deveria “seguir a concepção freiriana de diálogo, na qual os alunos buscam debater com autores, criar uma opinião própria e com caráter crítico”.
Venício Lima destaca que “Paulo Freire foi, acima de tudo, um grande humanista” e um “homem de profunda fé”. Para ele, com o avanço de “uma cultura de ódio e de intolerância no mundo atual”, o educador “tem uma imensa contribuição desse humanismo fundado no amor e na crença no outro”, que é a marca mais profunda de seu pensamento e sua obra.