Edição n° 29
Legado para este tempo
Josué de Castro é pioneiro nas denúncias sobre os fatores políticos e sociais da fome no país. Contribuições ainda alcançam o Brasil de hoje, mesmo após 50 anos de sua morte
Texto: Vanessa Vieira
O ano era 1946. Em meio à perplexidade do mundo frente às multidões famintas na Europa pós-guerra, um médico pernambucano denunciava que a mazela também dizimava outras pessoas, fora do centro geopolítico do planeta. Escancarar esta realidade na obra Geografia da Fome – a fome no Brasil deu repercussão internacional ao sociólogo Josué de Castro.
“Quanto à fome, foram necessárias duas guerras mundiais e uma tremenda revolução social – a revolução russa (…) para que a civilização ocidental se apercebesse que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo”, declara o também nutricionista e geógrafo no prefácio do exemplar original.
O título rompe o que ele chamou de “conspiração do silêncio”: “O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constitui num dos tabus de nossa civilização”, afirma sobre a quase inexistência de estudos na bibliografia mundial da época.
O pernambucano elenca as causas do espantoso vazio bibliográfico: “foram os interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido”.
Esclarece ainda que tais interesses pertencem a “classe das minorias dominantes” e estão a serviço do “imperialismo econômico e do comércio internacional”. Uma lógica que trata produção, distribuição e consumo dos produtos alimentares exclusivamente pela perspectiva financeira, em vez de considerá-los como fatores de interesse da saúde pública.
Com sua argumentação, Josué de Castro opõe-se às teorias deterministas que naturalizavam a fome, a exemplo das vertentes que atribuíam o quadro no Nordeste brasileiro às questões climáticas. Outra marca de seu pensamento é a perspectiva da Teoria dos Mundos, segundo a qual o tipo de desenvolvimento dos países considerados mais pobres é intencionalmente produzido pelos países ricos, em um arranjo internacional que gera desigualdades abruptas.
A fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo.
Geografia da Fome – a fome no Brasil, Josué de Castro.
CONTRIBUIÇÕES
Estudioso do pensamento de Josué de Castro, o sociólogo Renato Carvalheira relembra que Geografia da Fome se tornou um best-seller à época. “Era o fim da Segunda Guerra e a Europa enfrentava fome, desabastecimento e uma série de desregulamentação do comércio internacional. O livro chega nesse timing.”
“Esta é uma obra síntese de uma série de seus estudos. Analisa a questão da fome com uma complexidade de fatores que reúne questões ambientais e territoriais, e modelo de desenvolvimento socioeconômico. Alguns autores atribuem ao seu pensamento os fundamentos do atual conceito de desenvolvimento sustentável”, acrescenta Carvalheira sobre o vanguardismo da produção.
O sociólogo destaca que o mapa apresentado na obra é até então inédito. “Ele faz a caracterização das regiões brasileiras pelo modelo de desenvolvimento, identificando-as pelos hábitos nutricionais-alimentares e pelos fenômenos ambientais.”
O mapeamento feito por Castro evidencia que “no sertão [nordestino] o quadro é epidêmico, culminando na fome sazonal, que chega junto com a seca, responsável por deteriorar um modelo de desenvolvimento muito frágil. Já no litoral, onde há plantação de cana de açúcar, a fome é endêmica, pois chega junto com o modelo de desenvolvimento pelo qual o trabalhador e a população local sofrem cotidianamente”.
Segundo Carvalheira, as principais políticas públicas do país para alimentação carregam contribuições do pernambucano. “Ele foi autor do estudo Condições de Vida das Classes Operárias do Recife, em 1932, e concluiu que a baixa produtividade de trabalhadores de uma fábrica era consequência da fome. Este e outro estudo contribuíram para que em 1940 fosse implementado o salário-mínimo no país.”
Comecei a trabalhar numa grande fábrica e a verificar que os doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram acusados de preguiça. No fim de algum tempo compreendi o que se passava com os enfermos. Disse aos patrões: sei o que meus clientes tem. Mas não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui.A doença desta gente é fome. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi então que o problema era social. Não só do mocambo, não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do continente. Era um problema mundial, um drama universal.”
Fonte: Josué de Castro, Fundação Miguel de Cervantes, 2012. Tânia Elias Magno (organizadora).
Apesar da produção intelectual de peso, por décadas houve uma lacuna acadêmica sobre Josué de Castro. “Quando comecei a estudar sobre a fome, fui investigar quais produções versavam sobre ele e me assustei porque não havia praticamente nada até o início dos anos 1990”, resgata Carvalheira.
A imagem de um Brasil patriótico e exemplar que a ditadura militar impunha ao país estão entre as razões da ausência de estudos sobre o geógrafo, um dos primeiros brasileiros a ter os direitos políticos suspensos após o golpe de 1964.
“Hoje há uma rica bibliografia sobre sua vida e sua contribuição científica. Em 2003, ele foi consagrado patrono do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional]. São reconhecimentos necessários a um importantíssimo pensador brasileiro”, defende Carvalheira.
BIOGRAFIA
Josué Apolônio de Castro nasceu em Recife, capital de Pernambuco, em 1908. Durante a infância, testemunhou o drama da fome nos mangues, experiência que o marcou profundamente e o levou a dedicar sua vida para combatê-la.
Aos 21 anos, formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, atual UFRJ. Tornou-se geógrafo, sociólogo, diplomata, deputado federal, escritor. Um dos mais ilustres cientistas brasileiros, desbravou novas áreas como nutrição na perspectiva da saúde pública, geografia humana e ecologia, e relacionou essas várias áreas do conhecimento.
Em 1930, foi convidado por Anísio Teixeira para ocupar a Cátedra de Geografia Humana na Universidade do Distrito Federal (atual UFRJ). Em 1939, dirigiu o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), indicado por Getúlio Vargas. Instituiu, então, a obrigatoriedade da merenda escolar e participou da criação do salário-mínimo para combater a desnutrição nas camadas populares.
Em 1946 publica Geografia da Fome: a fome no Brasil. Outras de suas obras preeminentes são Festa das letras (1937), Documentário do Nordeste (1937), Geopolítica da Fome (1951).
Presidiu o Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), entre 1952 e 1956. Em 1954, elegeu-se deputado federal e em 1958 foi o candidato mais votado do Nordeste. Como político, defendeu a reforma agrária, a ampliação do saneamento básico, da educação e da saúde pública.
Foi agraciado com o Prêmio Franklin D. Roosevelt, pela Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos, e com o Prêmio Internacional da Paz pelo Conselho Mundial da Paz.
Fundou a Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam), com sede em Genebra (Suíça). Foi embaixador do Brasil na Organização Internacional do Trabalho (OIT), cargo do qual foi destituído em 1964, quando teve seus direitos políticos cassados pela ditadura militar.
Exilou-se em Paris, onde faleceu em setembro de 1973, sem ter conseguido aprovação para retornar ao Brasil.
* Fonte: Josué de Castro, Fundação Miguel de Cervantes, 2012. Tânia Elias Magno (organizadora).
EU FAÇO CIÊNCIA:
Quem é o pesquisador:
Renato Carvalheira do Nascimento é sociólogo e mestre em sociologia (UnB), com dissertação sobre Josué de Castro, e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).É vice-coordenador da Rede Penssan e foi relator do Brasil para o Direito Humano à Alimentação Adequada na FAO Regional América Latina (2009).
Título da dissertação: Josué de Castro: o sociólogo da fome