Edição n° 23
Nelson Cardoso Amaral falou sobre financiamento das instituições públicas federais
A pressão pela mercantilização da educação por grandes grupos é forte. Quem afirma isso é o professor Nelson Cardoso Amaral que lembra que a gratuidade é um princípio constitucional, além de ser parte da tradição educacional
Texto: Nair Rabelo
O financiamento da educação não é tema de entendimento simples e, por isso, há muitas meias verdades e análises mal-intencionadas circulando. Especialista no assunto, o professor Nelson Cardoso Amaral, autor dos livros Financiamento da Educação Superior: Estado X Mercado e Para Compreender o Financiamento da Educação Básica no Brasil, tem graduação e mestrado em Física, mas seu interesse pela área começou quando assumiu a Pró-Reitoria de Administração e Finanças da Universidade Federal de Goiás (UFG), no início da década de 1990.
Costuma-se dizer que o Brasil aplica o equivalente a 6,2% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação e que os Estados Unidos, 5,3%. A conclusão apressada seria que o Brasil destina mais recursos que os EUA para esse setor. Fazendo as contas em US$/PPC – dólares corrigidos pelo Poder de Paridade de Compra – o professor da pós-graduação da UFG alerta: “O percentual de 6,2 sobre o PIB brasileiro significa US$/PPC 2.500 por pessoa de zero a 24 anos, enquanto 5,3% do PIB dos EUA totalizam US$/PPC 9.500 por indivíduo na mesma faixa etária. Portanto, os EUA investem muito mais em educação do que o Brasil”.
Os estudos acadêmicos sobre o financiamento da educação ampliaram-se a partir da criação, em 1998, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que virou, em 2007, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O Fundeb é um fundo especial e atende toda a educação básica, da creche ao ensino médio. Com vigência até 2020, ele tem âmbito estadual, com uma reserva por estado e Distrito Federal. Os recursos são provenientes de impostos e transferências dos entes federados e incrementam em dez vezes o volume anual da verba federal.
Debruçado sobre o tema em todos os níveis, etapas e modalidades e sobre as responsabilidades constitucionais da União, estados, Distrito Federal e municípios, Amaral acredita que o interesse pelo assunto na academia poderia ser maior. Houve uma expansão nos estudos a partir da discussão da meta 20 do Plano Nacional de Educação (PNE). Essa meta estabelece para o ano de 2024 a aplicação do equivalente a 10% do PIB em educação, desde o nível infantil até o superior. O professor da UFG acredita que é necessário reforçar os grupos de pesquisa já existentes que discutem a temática como um todo.
“Vivemos um momento em que as universidades públicas estão sob tremendo ataque, em que imperam atitudes não científicas e anti-intelectualistas”, afirma ele. Entretanto, diz-se otimista sobre o futuro da educação superior brasileira. Nelson Cardoso Amaral falou com a revista Darcy sobre o financiamento das universidades públicas federais.
Darcy – Cobrar mensalidade nas universidades públicas resolveria o problema orçamentário dessas instituições?
Nelson Cardoso Amaral – A cobrança de mensalidades nos países em que ela ocorre não consegue atingir valores importantes no orçamento das universidades. O Banco Mundial postula que uma universidade deve obter, no máximo, 30% de seu orçamento por outros meios possíveis de arrecadação na sociedade, incluindo a cobrança de mensalidades. No Brasil, a gratuidade da educação pública é um princípio constitucional e é parte da tradição educacional do país. A existência desse princípio se fundamenta no fato de o país possuir uma renda per capita baixa, grande desigualdade social e regional, e enorme concentração de renda em apenas 5% da população. Por todos esses aspectos, a implantação de mensalidades na educação superior pública brasileira não seria uma tarefa simples. E cabe aqui uma pergunta: os valores obtidos com a arrecadação de mensalidades seriam acrescentados ao orçamento já existente ou este seria diminuído e o valor total seria inalterado? Esse fato já ocorreu quando a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) se dirigiu para a Saúde: os recursos existentes, de outras fontes, foram retirados, mantendo inalterados os valores totais aplicados na saúde.
Darcy – Quais seriam os impactos sociais se acabasse a gratuidade do acesso?
NCA – Isso exigiria das famílias dispêndio em torno de 24% da renda bruta familiar para manter uma pessoa numa universidade federal. É um encargo familiar muito elevado para um país como o Brasil, que possui um conjunto de fatores que o diferencia de países em que há a cobrança de mensalidades. Temos um PIB que pode ser considerado grande, contudo, enorme assimetria regional, e um valor financeiro aplicado em educação, por pessoa em idade educacional, muito baixo.
Darcy – O que aconteceu com países que adotaram a cobrança de mensalidades nas universidades públicas mais recentemente?
NCA – O Chile é exemplo de um país que se aventurou a cobrar mensalidades na educação superior e, exatamente por não possuir as condições adequadas para fazê-lo, hoje está envolto em uma grande crise para retornar à gratuidade. Esperamos que isso não seja implementado no Brasil. A educação superior aqui está intimamente interligada com o desenvolvimento da ciência e tecnologia por meio do desenvolvimento de pesquisas e da existência de um consistente sistema de pós-graduação. Uma crise nas instituições de educação superior inevitavelmente levaria a uma crise também no desenvolvimento da ciência e tecnologia do país.
Darcy – É certo dizer que gastamos em demasia com o financiamento do ensino superior público?
NCA – O Brasil aplica em todo o seu processo educacional, desde a educação infantil até a educação superior, um valor baixo por pessoa em idade educacional (zero a 24 anos). Quando fazemos a comparação com membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), vemos que o Brasil aplica US$/PPC 2.525 por pessoa entre zero a 24 anos, enquanto o Chile chega a US$/PPC 3.935; a Coréia do Sul, US$/PPC 8.317; a Austrália, US$/PPC 9.280, e os Estados Unidos, US$/PPC 9.325. O que ocorre é que a maior diferença nos valores aplicados por pessoa em idade educacional está na educação básica e não na educação superior, gasto que não pode ser considerado em demasia. O volume de recursos na educação básica brasileira, adicionando-se os recursos financeiros aplicados pela União, estados, municípios e Distrito Federal, atingiu, em 2015, um valor equivalente a 4,9% do PIB, frente ao equivalente a 1,3% em educação superior – aí incluídos também os recursos aplicados nesse nível educacional pelos estados, municípios e pelo Distrito Federal. Para se ter uma ideia da dimensão dos valores financeiros aplicados em educação em todo o país, o valor do PIB em 2015 foi de R$ 5.904.331.214.709. Na educação básica foram aplicados R$ 289.312.229.521 (o equivalente a 4,9% do PIB) e na educação superior, R$ 76.756.305.791 (1,3% do PIB). Uma elevação maior dos recursos na educação básica ocorreu no período 2000–2015 e fez com que o valor médio aplicado por aluno matriculado nesse nível educacional passasse de R$ 2.534, em 2000, para R$ 7.575 em 2015, a preços de janeiro de 2019, corrigidos pelo IPCA. O valor aplicado por aluno na educação superior, nesse mesmo período, passou de R$ 27.675, em 2000, para R$ 27.561, em 2015, considerando a mesma correção para o mês de janeiro de 2019. Dessa forma, nota-se uma elevação real de 200,1% no valor aplicado por aluno na educação básica, enquanto o valor por aluno na educação superior permaneceu praticamente inalterado.
Darcy – Quais despesas estão incluídas no cálculo do valor aplicado por aluno na educação superior?
NCA – Esse cálculo não significa custo do aluno. Aí estão incluídos o pagamento de pessoal aposentado e pensionistas, todas as despesas realizadas com pesquisas, projetos de extensão e com a realização de serviços prestados pelas instituições. Houve, portanto, ao longo do tempo, um movimento de diminuição da distância entre valores por aluno na educação básica e na educação superior, sem que isso tenha representado uma redução nos valores investidos na educação superior pública. Essa trajetória precisaria ser continuada. É inadmissível que se promova a destruição da educação superior pública com a argumentação de que os recursos deveriam ser transferidos para a educação básica. Isso é fácil de se observar, uma vez que o valor por aluno nesse nível educacional sofreria apenas uma pequena elevação. Esperamos que mais esta insanidade não seja cometida na educação brasileira.
Darcy – Existe de fato um sucateamento das federais?
NCA – As universidades federais cresceram muito no Brasil no período de 2005 a 2017. O aumento no quantitativo de estudantes foi de 100,9%, entre os de graduação, e 203,8%, entre os de pós-graduação stricto-sensu, e essas variações foram bem maiores que o aumento no quantitativo de professores, que foi de 82,1%. Sendo que docentes mestres e doutores aumentaram em 131,9%. Uma expansão dessa magnitude provoca muitas mudanças no ambiente universitário e dela despontam necessidades adicionais com relação à pesquisa e extensão, associadas ao aumento de pós-graduados. Aliando-se essas informações àquela da não variação dos valores aplicados por estudante, como já analisamos, pode-se concluir que o conjunto das universidades federais brasileiras elevou suas atividades de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão, aprimorando também seus componentes de custos, conseguindo elevar o grau de eficiência e eficácia na gestão, o que pode dar a sensação de sucateamento, uma expressão muito forte. O que se pode afirmar é que, desde 2014, está havendo uma compressão das verbas para o pagamento das despesas de manutenção, obras e equipamentos que culminou, neste ano de 2019, com o contingenciamento em torno de 30% desses recursos. Isso poderá inviabilizar o funcionamento das instituições pela impossibilidade de pagar fornecedores de água, luz, telefone, terceirizados, etc. Isso sim seria o sucateamento em sua dimensão mais elevada: a impossibilidade de continuar funcionando.
Darcy – Quais são os desafios das universidades em alcançar as metas do Plano Nacional de Educação 2014-2024?
NCA – A meta 12 do PNE estabelece que, daqui a cinco anos, o país deveria atingir, na educação superior, uma taxa bruta (razão entre o número total de matrículas, independente da faixa etária, e a população com idade prevista para este nível de ensino) de matrículas de 50%. A taxa líquida deverá ser de 33%, entendida como a razão entre as matrículas de alunos com idade prevista para estar cursando o nível de ensino e a população total na mesma faixa etária. Pelo menos 40% desta expansão deverá ser no segmento público. A meta 12 foca exclusivamente na graduação, assim sendo, corresponde à população entre 18 e 24 anos. Utilizando informações do Censo da Educação Superior de 2015 e da projeção da população realizada pelo IBGE até 2060, seria necessário haver expansão de matrículas para o cumprimento desta meta. Para atingir a taxa líquida de 33%, as matrículas dos jovens de 18 a 24 anos devem se ampliar de 4.074.044, em 2015, para 7.721.874, em 2024, um aumento de 90%; e para atingir uma taxa bruta de 50%, seria preciso atingir um total de 11.699.810 de matrículas, acréscimo de 46% em relação a 2015, quando eram 8.027.297 estudantes.
Darcy – E como fazer isso?
NCA – É preciso chamar a atenção para o fato de que a expansão de todas as matrículas precisa ocorrer simultaneamente, o que pode ampliar, ainda mais, a necessidade de novas matrículas em todas as idades. Nesse caso, a esfera federal terá que aumentar em 75% o número de matrículas, contando com o fato de que as esferas estaduais e municipais também façam um crescimento dessa magnitude. Será um enorme desafio atingir essa meta. Teríamos que promover uma nova expansão até 2024, praticamente equivalente àquela ocorrida de 2005 a 2017, como já analisamos, e isso somente seria possível a partir de um programa proposto pelo Governo Federal, fato que não é cogitado pelo atual governo. Não se conhece nenhuma proposta relativa às metas do PNE e, principalmente sobre a meta 20, com a ideia de elevação a 10% do PIB em educação. A própria Emenda Constitucional nº 95/2016 (emenda do teto dos gastos), que congelou os gastos do Poder Executivo até 2036, constitui-se em grave impedimento para que a situação seja alterada.
Darcy – As universidades sairão fortalecidas e mais integradas à sociedade?
NCA – Com tantos ataques vindos de quem deveria valorizá-las – o MEC –, as universidades públicas perceberam a necessidade de se aproximar mais da sociedade e mostrar tudo o que fazem além de formar médicos, engenheiros, pedagogos, filósofos, cientistas. Elas estão realizando diversas atividades, mostrando os serviços que são prestados, as pesquisas que mudam a vida das pessoas, os projetos de extensão desenvolvidos e as especializações para os profissionais já formados. É por isso que afirmo que elas sairão revigoradas desse processo e com maior apoio da sociedade. Aqueles que acham que é possível destruí-las estão muito enganados.