A descoberta dos crocodilos herbívoros
Estudos indicam que na era dos dinossauros houve uma espécie de crocodilo que se alimentava de plantas enquanto a outra espécie, carnívora, era predadora da herbívora.
Texto: Marcela D’Alessandro
Ilustração: Felipe A. Elias/PaleoZOO BR.
Pesquisadores da Universidade de Brasília descobriram que já houve no Brasil uma espécie de “crocodilo” que se alimentava de plantas, apesar de ter o mesmo ancestral da outra espécie, carnívora. Chamados de crocodilomorfos, ambos eram contemporâneos dos dinossauros no período Cretáceo, datado entre 145 e 66 milhões de anos atrás.
Na análise dos fósseis encontrados principalmente nas cidades de Jales e Fernandópolis, no interior do estado de São Paulo, os estudiosos identificaram dentes com diferentes formatos no caso das espécies da família Sphagesauridae. Isso indica que comiam algo distinto das espécies da família dominante, Baurusuchidae, cujos dentes alongados e afiados, típicos de animais carnívoros, variavam em tamanho, mas não em formato.
Com caniniformes, incisiformes e molariformes (semelhantes aos dentes caninos, incisivos e molares dos humanos), a heterodontia dos Sphagesauridae indica que eles mastigavam o alimento antes de engolir, e as marcas de desgaste horizontais sugerem que roçavam os dentes uns nos outros ao processar a comida. Além disso, a morfologia da mandíbula, menos acentuada, é bem diferente das espécies de Baurusuchidae.
Mas o que levou os pesquisadores a conclusões sobre o hábito alimentar dos Sphagesauridae foram exames diversos em coprólitos (fezes fossilizadas) encontrados naquelas cidades.
“Poucas pessoas no Brasil estudam coprólitos. Muitos falam que é o patinho feio da paleontologia, mas todo fóssil é importante e tem seu valor científico, independente da sua natureza e da sua origem, desde um microfóssil, como um grão de pólen, até um saurópode gigantesco, como o braquiossauro”, afirma o biólogo Fábio Antônio de Oliveira, mestre e doutor em Geologia pela UnB. Ele e outros três pesquisadores avaliaram 41 amostras de coprólitos encontrados junto a crocodilomorfos da Formação Adamantina em Jales e Fernandópolis, entre 2006 e 2013. Esta região é uma das mais ricas em fósseis deste grupo.
A análise do conteúdo revelou que os coprólitos associados aos Baurusuchidae continham pequenos fragmentos ósseos, o que comprova uma dieta carnívora; já os associados aos Sphagesauridae continham resquícios vegetais, o que indica que estes eram herbívoros ou onívoros.
“Nos coprólitos de Sphagesauridae foram encontrados restos de plantas que foram atribuídas a gnetófitas [plantas vasculares que apresentam sementes, mas não dão flores e frutos]. O ambiente conhecido era de clima árido e a presença desse grupo de plantas arbustivas era esperado”, esclarece Fábio de Oliveira.
A pesquisa publicada na revista científica especializada Lethaia traz a descrição detalhada das amostras, com foto, composição química dos coprólitos e o conteúdo deles, além de uma reconstrução dos fragmentos vegetais em 3D. Os materiais passaram por fração de raio-X, microscopia eletrônica de varredura, entre outras técnicas de estudo.
Os coprólitos analisados foram divididos em três grupos: cilíndricos, liquefeitos e indeterminados. Os primeiros ainda tinham uma subdivisão entre mais espessos e menos espessos, o que ajudou a diferenciar as fezes de crocodilomorfos das de dinossauros. Já os liquefeitos, que são como fezes amolecidas fossilizadas, foram atribuídos a indivíduos jovens da família Baurusuc hidae.
“Esses liquefeitos só encontramos na região de Jales, no mesmo nível em que ocorrem os ovos de crocodilomorfos. A ideia é que lá poderia ser uma área de nidificação e esses coprólitos liquefeitos estão relacionados com a presença de indivíduos jovens, filhotes, o que é condizente”, completa Fábio de Oliveira.
Coautor do artigo, o paleontólogo e professor na Faculdade UnB Planaltina (FUP) Rodrigo Santucci conta que as análises indicaram ainda que os crocodilomorfos herbívoros eram, muitas vezes, presas da espécie carnívora.
“Com os coprólitos, vimos que tem uma espécie que muito provavelmente era herbívora (encontramos restos de folhas e outras estruturas de plantas preservadas), e uma outra espécie, que era carnívora e provavelmente comia essa espécie herbívora. É como se fosse uma espécie de crocodilo comendo outra”, explica.
O docente destaca que a evidência encontrada pelos pesquisadores da UnB também foi comprovada por outro estudo da Universidade de São Paulo (USP).
“Um colega da USP de Ribeirão Preto achou um desses crocodilomorfos que dentro – entre as costelas, ali na caixa torácica, no abdome – tem restos de um crocodilo menor, supostamente dessa espécie que identificamos agora como herbívora. Está um dentro do outro, com crânio e tudo, impressionante. Então, o carnívoro comia mesmo o herbívoro”, assegura Rodrigo Santucci.
Evolução e Anatomia
O professor da UnB Planaltina observa ainda que os crocodilomorfos herbívoros desenvolveram uma espécie de escudo composto por pequenas placas ósseas na região do pescoço, que seria de defesa. Tal estrutura não é encontrada nos carnívoros Baurusucchidae.
“Os crocodilos atuais também têm um escudo meio encouraçado, com placas protegendo o pescoço, toda a faixa das costas, o dorso. Quando vemos uma estrutura dessas, sempre pensamos que essas coisas não evoluem à toa: ou é para mostrar algo ou então se defender de predadores mesmo, que parece ser o caso ali”, elucida o docente.
Um segundo estudo, conduzido por Rodrigo Santucci e outros três pesquisadores, traz detalhes físicos que ajudam a caracterizar melhor o Baurusuchus e como ele vivia no período cretáceo. A espécie carnívora era predominantemente terrestre.
Entre outros motivos, o grupo chegou a essa conclusão depois de verificar que a posição da cabeça do bicho ficava levemente abaixada, característica de animais que andam em terra firme. Isso o difere dos crocodilos atuais, que têm a posição de alerta da cabeça mais erguida, sobretudo porque são espécies mais aquáticas – e a cabeça fica para fora da água nessas situações.
A posição das narinas do Baurusuchus também é mais na ponta e mais abaixo na comparação com os crocodilos modernos, o que reforça a observação sobre a posição da cabeça e o hábito terrestre.
“Temos o osso preservado, às vezes as pegadas, as próprias fezes, mas como ele se comporta, se tinha bom senso de equilíbrio, de orientação espacial, se corria bem ou não, se sentia cheiro de outros animais, outros odores, isso não se preserva no registro fóssil. Mas através dessas técnicas de análise, da neuroanatomia, conseguimos reconstruir pelo menos um pouquinho das características desses bichos”, ensina o professor da FUP.
Ele reforça que tecidos moles, como pele e órgãos, não sobrevivem ao processo de fossilização. Mas que pelo menos parte do sistema nervoso pode ser recuperada por meio da análise dos canais por onde passavam os nervos que chegavam ao cérebro do animal, por exemplo.
“Existem mais de dez nervos que têm contato com o cérebro fazendo parte do sistema nervoso e que não se preservam, mas passam por porções internas do crânio. Eles deixam um buraquinho ali, como se fosse um canal, e nós conseguimos reconstruir esse nervo”, conta.
“Na fossilização o osso se preserva, e os canais de passagens desses nervos são preenchidos por sedimento, que vira rocha, e aí com a tomografia conseguimos separá-los, porque eles têm densidades diferentes e o aparelho mostra cores diferentes para esses materiais. E nós, com muita paciência, depois de fazer a tomografia conseguimos reconstruir esses canais em três dimensões (3D) e analisar como eles eram”, detalha o docente.
Assim, o grupo reconstruiu, por exemplo, o nervo olfatório ou bulbo olfatório. Ao comparar com crocodilos e jacarés atuais, conseguiram verificar que a capacidade olfativa do Baurusuchus não é tão diferente desses animais. O nervo óptico também passou por análise, bem como o labirinto, estrutura do ouvido interno.
O que se constatou foi que o animal fossilizado tinha, de fato, o equilíbrio e o senso de orientação de um bicho terrestre, a posição da cabeça inclinada para baixo ao caminhar, e o focinho localizado mais abaixo, permitindo que seus olhos fossem voltados para frente e sua visão fosse estereoscópica – como a dos humanos. Isso quer dizer que ele conseguia enxergar com tridimensionalidade, tinha boa noção de profundidade.
“Isso abre espaço para interpretar se ele era um predador. Diferente dos crocodilos e jacarés atuais, que ficam parados, meio escondidos, e esperam a presa chegar para dar o bote, morder e levar para a água, esse bicho, por não ter a parte aquática da vida, devia ser um predador de ir atrás das presas, ativo, caçador”, explica Rodrigo Santucci.
De acordo com o paleontólogo, hoje não existem espécies herbívoras de crocodilos e jacarés, todas são carnívoras – que na fase juvenil comem pequenos vertebrados e insetos.
“A diversidade de jacarés e crocodilos hoje em dia é muito diferente da que encontrávamos lá no período do Cretáceo. Esses bichos que temos estudado, contemporâneos dos dinossauros, tinham uma diversidade muito maior que a atual”, arremata o docente.