Bichinho incômodo

Pesquisadores atuam na prevenção de um parasita conhecido, porém negligenciado: o bicho de pé – e testemunham a importância de levar saúde pública a comunidades indígenas da região Norte do país

Texto: Luma Poletti
Fotografia: Arquivo pessoal

Eles formam um grupo de quase 900 mil pessoas distribuídas por todo o país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se dividem em 305 etnias, com 274 línguas diferentes e 57,7% vivem em terras indígenas oficialmente reconhecidas.

Mas nenhum dado estatístico é tão esclarecedor quanto conhecer de perto a realidade dessas comunidades, como testemunham pesquisadores da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de Brasília após expedição realizada, em janeiro de 2022, a aldeias na região norte do país. 

O motivo da expedição é aparentemente inofensivo. Quem já andou descalço em regiões de fazenda ou no litoral provavelmente o conhece: o famoso bicho de pé. A coceira característica denuncia a infecção, e um olhar mais atento logo localiza o pequeno parasita. O método de extração pode variar e, após sua retirada, basta aplicar antisséptico e o problema está resolvido. Mas nem sempre é simples assim. 

Bicho de pé é o nome popular dado à pulga Tunga penetrans, que provoca a tungíase. Em casos graves, a infecção pode ocasionar lesões nas mãos, nos pés, na região do glúteo ou em qualquer parte do corpo em contato com a pulga, resultando até mesmo em amputação. 

“Em 2018, houve uma movimentação muito grande por parte de alguns países, principalmente Brasil e Colômbia, preocupados com o aumento dos casos da tungíase em comunidades indígenas”, explica o dermatologista Ciro Martins Gomes, professor da FM e médico no Hospital Universitário de Brasília (HUB). “Pessoas estavam tendo problemas de pele muito sérios por uma doença que todo mundo acredita ser simples”, completa.

Não por acaso a tungíase foi incluída no rol da Organização Mundial da Saúde (OMS) de doenças cutâneas tropicais negligenciadas e foi tema de uma chamada pública, em 2019, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em parceria com a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE), do Ministério da Saúde. 

O projeto Monitoramento e viabilização das intervenções humanas, animais e ambientais no controle da tungíase em comunidades indígenas, coordenado por Ciro Gomes, é uma das 16 iniciativas selecionadas pela chamada. 

O estudo atende a comunidade Sanöma, subetnia linguística do povo ianomâmi, localizada no município de Amajarí, região do rio Auaris, no extremo norte do estado de Roraima, próxima à fronteira com a Venezuela.

Equipe da UnB e da Sesai prestam atendimento em comunidade Yanomani. Foto: Arquivo pessoal

Desafios 

As comunidades visitadas são localizadas em regiões de difícil acesso. Para chegar, foram voos, horas de barco e longas caminhadas. “Andávamos 9 km por dia para chegar às aldeias”, lembra Renata Velôzo Timbó, servidora técnica em laboratório na UnB e discente no pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da UnB. 

Os pesquisadores destacam a importância da parceria com a Sesai e com o Exército, pois a equipe ficou em alojamentos do Pelotão Especial de Fronteira. “Não tem energia elétrica na região, tivemos um contratempo com os alimentos que levamos, e o Exército nos forneceu mantimentos”, conta Renata. 

Tudo isso, em um ambiente marcado pela amplitude térmica: dias quentes e noites frias. “Durante o dia era um calor abafado, na sombra era quente. Nos primeiros dias, eu tive dificuldade de respirar. A noite chegava, caía a temperatura, aí você não sabia se usava roupa quente ou fresca”, relata a servidora. 

O veterinário Rafael conta que não acreditou quando disseram que à noite as temperaturas caíam. “Pensei: ‘como assim frio?’ Vou dormir normal, só com lençol. Quando deu 1h da manhã estava fazendo 10ºC, acordei congelando. Na segunda noite, me preparei melhor, com casaco e meia”. 

No entanto, os pesquisadores avaliam que o principal desafio não foram as adversidades enfrentadas no acesso às comunidades indígenas: “O bicho de pé pode parecer simples, mas em uma população em vulnerabilidade, com costumes totalmente diferentes, não podemos aplicar o que usamos aqui no HUB. Isso demandou muita observação”, afirma o professor Ciro Gomes. 

 

Contribuição científica 

O projeto de pesquisa foi selecionado pela chamada do CNPq no final de 2019 e, em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia de covid-19, o que impactou gravemente as comunidades indígenas. De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 162 povos já foram afetados pelo coronavírus desde então, e mais de 1,3 mil mortes foram registradas.* 

Para garantir a segurança de todos e em cumprimento às normativas da Fundação Nacional do Índio (Funai) quanto ao ingresso nas terras indígenas, as visitas às comunidades foram suspensas, e a equipe do projeto concentrou esforços na etapa teórica. O estudo resultou em uma publicação sobre o tratamento da tungíase em revista internacional de alto impacto. 

Além disso, o período foi dedicado ao exame de tecnologias, com o objetivo de formular uma maneira simples e adequada para identificar a tungíase. Uma das soluções em desenvolvimento envolve a análise molecular do solo, para constatar se ele está infestado ou não pela Tunga penetrans. 

A ideia é que o procedimento seja feito da seguinte forma: o agente de saúde ou a própria população coleta uma amostra do solo e envia para análise da equipe do projeto. Os pesquisadores, por sua vez, informam se o solo está infestado ou não. 

“A quantidade de pulga no solo está relacionada com o número de pessoas infectadas, o que nos permite priorizar o local de atendimento: olha, naquela população o solo está mais infestado, então vamos começar por lá”, explica Ciro Gomes. 

Em razão do êxito das ações nas comunidades, a equipe da UnB foi convidada pela Sesai a expandir a atividade para outros territórios indígenas. “A gente se coloca disponível para isso”, afirma Ciro Gomes. Em razão do impacto da pandemia de covid-19 no cronograma do projeto, também existe a expectativa de que ele seja prorrogado.

Ao todo, cerca de 30 pessoas participam do grupo de pesquisadores coordenados pelo professor, entre estudantes de graduação, pós-graduação e servidores. Mas nem todos vão a campo. Além do impacto nas comunidades indígenas, as ações se desdobram em produção científica: estão previstas duas teses de doutorado, duas dissertações de mestrado, um trabalho de pós-doutorado e outras duas publicações internacionais relacionadas ao projeto. 

No entanto, Ciro Gomes ressalta que o grande aprendizado é ir além das paredes do laboratório. “É uma pesquisa de ponta responsável, em uma população em vulnerabilidade. Essa é a contribuição mais importante”, conclui.

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