DOSSIÊ

País rico, nação pobre

A geração de riqueza no mundo contemporâneo é suficiente para garantir a todas as pessoas condições de vida dignas. Entretanto, quase metade da população mundial vive com receita mensal inferior ao equivalente a um salário-mínimo brasileiro. Brasil está entre as nações com maior desigualdade.

Texto: Secretaria de Comunicação

Menino em situação de rua dorme em frente a agência do Banco do Brasil. Taguatinga, Distrito Federal, Brasil. 2014. Foto: Ivaldo Cavalcante

A definição de desigualdades, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), é o estado de não ser igual, especialmente em esferas como status, direitos e oportunidades. Quando acentuadas, as diferenças afetam diretamente as possibilidades que cada pessoa tem na vida. Além disso, disparidades extremas decorrem de situações sobre as quais o indivíduo não tem escolha, como gênero, raça, etnia, status socioeconômico.

Uma das principais facetas da desigualdade é a concentração de renda. Segundo a Oxfam, organização internacional de combate à pobreza e à injustiça social, o 1% mais rico do planeta acumulou, em 2019, mais que o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas – cerca de 92% da população. Ademais, quase metade da população mundial sobreviveu com menos de US$ 5,50 por dia, o equivalente a menos de um salário-mínimo brasileiro ao mês.

O aumento da disparidade é confirmado pela ONU no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019. Apesar de o número de pessoas vivendo em extrema pobreza ter caído (de 1,9 bilhão em 1990, para 727 milhões em 2015), a desigualdade global caminha para níveis recordes, com 40% da riqueza concentrada entre os bilionários.

A organização aponta, no Word Social Report 2020 (Relatório Social Mundial, em tradução livre), que a concentração de renda segue aumentando, desde 1990, na maioria dos países desenvolvidos. Parte dos países latino-americanos conseguiu atenuar o quadro entre 1990 e 2010, quando a disparidade voltou a crescer em várias dessas nações.

Panorama brasileiro

O Brasil segue passos antigos e mantém-se entre as nações com desigualdade crescente. O país é o nono mais desigual do mundo, num ranking que contempla 164 nações, de acordo com o World Development Indicators (Indicadores de Desenvolvimento Social, em tradução livre), publicado em 2020 pelo Banco Mundial.

A classificação foi feita a partir do Índice de Gini, que mede a concentração de renda numa escala de 0 (sem desigualdade) a 1 (desigualdade máxima). O resultado do país foi de 0,539, tendo como base o rendimento domiciliar per capita brasileiro em 2018. O desempenho foi ainda pior em 2019, ao atingir a marca de 0,543. O dado retrata o aumento da desigualdade em relação a anos anteriores, como em 2015, cujo índice foi de 0,524 – o menor registado na série histórica iniciada em 2012. A pouca variação do coeficiente ao longo dos anos indica, ainda, a persistente disparidade na distribuição de renda entre a população.

Para se ter uma ideia do tamanho da desigualdade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, os 10% mais ricos concentravam quase metade (42,9%) da renda total do país. Além disso, 13 milhões de pessoas, ou 6% da população, viviam na extrema pobreza, com renda mensal ou inferior a R$ 151. Outros quase 52 milhões de pessoas viviam na pobreza, com até R$ 436 por mês.

Professor do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília, Camilo Negri destaca que a primeira dificuldade em torno das desigualdades sociais é sua compreensão como um problema. “A naturalização das desigualdades e a banalização da pobreza são comuns em países tangidos por altos níveis de desigualdade”.

Ele lembra que “o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo devido a fatores históricos, políticos, culturais e socioeconômicos” e afirma “não ser fácil, portanto, explicar e combater a desigualdade no país”.

Herança perpetuada

A desigualdade no Brasil também tem recorte de raça – uma triste herança do período colonial, marcado pela escravatura e exploração de negros e indígenas, que reverbera até os dias atuais. Pesquisas atestam que os maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social estão nas populações de cor ou raça preta, parda e indígena.

Segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2020 do IBGE, pessoas pretas ou pardas são a maioria da população brasileira (56,3%). Apesar disso, elas representam apenas 27,2% de quem está no grupo dos 10% com maiores rendimentos. Em contrapartida, são 77% dos indivíduos no outro extremo, o dos 10% com menores rendimentos.

A disparidade também fica evidente no rendimento domiciliar per capita médio, já que pessoas brancas recebem quase o dobro (R$1.948) do que é verificado entre pretas ou pardas (R$ 981).

Segundo o informativo do IBGE Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, de 2019, pessoas pretas ou pardas eram, proporcionalmente, mais que o dobro da população branca com rendimento inferior às linhas de pobreza apontadas pelo Banco Mundial. Considerando a linha de US$ 5,50 diários, em 2018 a taxa de pobreza de pessoas brancas foi de 15,4%, e de 32,9% entre pretas e pardas. Já na linha da extrema pobreza, para rendimentos inferiores a US$ 1,90 diários, estavam 3,6% das pessoas brancas e 8,8% das pretas ou pardas.

As desvantagens para pretos ou pardos são constatadas em diversos outros indicadores: a taxa de analfabetismo no grupo era de 9,1%, sendo de 3,9% para brancos; eles ocupavam apenas 29,9% dos cargos gerenciais do país, enquanto brancos preenchiam 68,6%; em 2019, quase metade de sua população (44,5%) vivia em domicílios sem pelo menos um dos serviços de saneamentos básicos, já entre brancos o percentual era de 27,9%.

O grupo também é o mais atingido pela violência: entre indivíduos de 15 a 29 anos, a taxa de homicídios chegou a 98,5 a cada 100 mil habitantes em 2017, contra 34 a cada 100 mil para brancos. Quando delimitada para jovens pretos ou pardos do sexo masculino, a taxa foi para 185.

Uma caraterística importante na análise da segregação racial é a atividade econômica, que permite identificar a segmentação das ocupações no mercado de trabalho. A Síntese de Indicadores Sociais, publicada pelo IBGE em 2020, revela que as atividades com menor rendimento possuíam proporcionalmente mais trabalhadores de cor preta ou parda: as agropecuárias (62,7%), de construção (65,2%) e serviços domésticos (66,6%). Segmentos com rendimentos superiores, a exemplo de educação, saúde, serviços sociais e administração pública, tiveram maior participação de pessoas de cor branca.

Para a docente da Faculdade de Direito da UnB Alejandra Pascual, o Estado brasileiro é responsável pelas violações sofridas por essas populações, por não ter feito reparação histórica que as beneficiaria, deixando-as em posição de extrema desigualdade econômica, educacional, de saúde, entre outras esferas.

“A desigualdade atinge o direito de ter uma vida plena. Os integrantes de grupos excluídos são vítimas de uma violência contra suas vidas: no preconceito, na discriminação, na impossibilidade criada pelo Estado e pela sociedade para que eles possam desfrutar da vida de forma digna e em igualdade de condições”, lamenta a docente.

Era das desigualdades

A desigualdade do país tem raízes num passado que remete, entre outros acontecimentos, à escravatura e à concentração de terras pela elite rural num país cuja economia é baseada na produção agrícola. Na obra Uma História de Desigualdade, 1926-2013, o doutor em Sociologia pela UnB e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Pedro Ferreira Souza, mostra que o Brasil viveu ondas de concentração de renda, em que os piores períodos para a desigualdade ocorreram com o Estado Novo (1937-1946) e com a ditadura militar (1964-1985).

Nos momentos mais críticos apontados por Souza, a renda de 1% da população mais rica do país era cerca de 25% da renda total, enquanto a do 0,1% mais rico girava em torno de 10% da renda nacional. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2020, da ONU, o cenário atual é ainda mais grave: o 1% mais rico do país concentrava, em 2018, 28,3% da renda do país; e os 10% mais ricos somavam 41,9% da renda total.

Em períodos próximos ou mesmo nos anos de piora na desigualdade do Brasil, o mundo também se encontrava em recessão. É o caso da crise de 1929, conhecida como a Grande Depressão, quando houve forte recessão econômica que atingiu o capitalismo mundial. Como consequência, diversos países entraram em crise, elevando os patamares de desemprego: Bélgica e Grã-Bretanha com 23% da população desocupada; Dinamarca com 32%; Alemanha com 44%.

No Brasil, o setor cafeeiro foi o mais afetado. O grão era o principal produto de exportação do país, representando cerca de 70% do café comercializado no mundo. Como consequência da recessão global, o produto ficou parado no mercado nacional, ocasionando queda nos preços e prejuízo em toda a cadeia produtiva. Ao mesmo tempo, o país passava por mudanças políticas oriundas da revolução de 1930, responsável pelo fim dos governos oligárquicos.

Em 1970, o mundo encontrava-se mais uma vez instável, dessa vez com a crise do petróleo (1973-1979), que afetou o ritmo de crescimento dos países industrializados. Com a descoberta de que o petróleo é uma energia não renovável, ou seja, de que o recurso é finito, a comódite tornou-se motivo de especulação financeira. O aumento nos preços do recurso, aliado ao consumo crescente pelos países industrializados, resultou em inflação e desemprego – ocasionando mudanças de políticas econômicas ao redor do mundo.

No Brasil, o impacto mais expressivo nas atividades econômicas foram: retração da produção industrial; queda no Produto Interno Bruto (PIB), que passou de 7% ao ano (década de 1970), para 2% (década de 1980); altas taxas de juros internacionais; além de dívidas internas e externas acumuladas pelo país, por conta da política fiscal expansionista adotada pelo governo federal. Os anos 1980 ficaram conhecidos como década perdida, no que se refere ao desenvolvido econômico vivido pelo Brasil e por outros países da América Latina.

Um olhar amplo para o século XX destaca o impacto direto na economia mundial das primeira e segunda guerras mundiais e de grandes epidemias, cujo resultado foi menos produção de riqueza e diminuição na concentração de renda. As guerras, por exemplo, ocasionaram o aumento da proteção do Estado para com seus cidadãos, o que favoreceu a distribuição de rendimentos e amplia as garantias sociais.

A partir da década de 1980, verificou-se a retomada na concentração de renda em países líderes da economia global. O fato decorreu de medidas que beneficiaram os mais ricos, como políticas de redução de impostos, adotadas por governos como o de Ronald Reagan (1981-1989) nos Estados Unidos e o de Margaret Thatcher (1979-1990) no Reino Unido.

Camilo Negri ressalta que, com a globalização, o que acontece a nível mundial respinga na economia local. “As desigualdades também envolvem as relações entre os países e sua interação no sistema econômico global. Como o Brasil insere-se de forma periférica nesse sistema, as condições de enfrentamento à desigualdade socioeconômica também sofrem limitações que dependem da soberania política do Brasil.”

Segundo o sociólogo francês e autor do livro O Capital no Século XXI, Thomas Piketty, nas economias de mercado as desigualdades aumentam porque aqueles que possuem as riquezas têm rendimentos que tendem a ser maiores que a média do crescimento econômico.

É preciso mudar

Os prejuízos sentidos na pele pelos cidadãos com direitos lesados em decorrência de desigualdades sociais são percebidos, em escala maior, no índice de desenvolvimento humano dos países e em suas taxas de crescimento econômico.

“Existem níveis de desigualdade que podem ser moralmente aceitáveis e funcionais. Entretanto, desigualdades elevadas são muito ruins. Elas afetam o próprio desempenho global da economia e fazem com que as pessoas não exerçam seu potencial pleno”, avalia Marcelo Medeiros, docente do Departamento de Sociologia e orientador da pesquisa feita por Pedro de Souza.

Segundo Medeiros, um conjunto de fatores move o país em direção à desigualdade e naturaliza esse quadro, a exemplo da distribuição desigual de propriedades e da política econômica. Para o especialista, parte da desigualdade no Brasil “tem origem obscura, ainda que proveniente de gerações passadas”, o que é “replicado e amplificado por capitalismo de compadrio, em que o êxito das ações depende do estreitamento de relações entre empresários e corporações com a classe política”. “Note bem, não são as pessoas, são as estruturas”, pondera.

Camilo Negri reforça que os diferentes níveis de acesso aos avanços da medicina, à educação de qualidade, à previdência social, ao reconhecimento social, ao trabalho digno, à remuneração adequada e à justiça social dependem de categorias como raça, gênero e classe – que segundo o professor, interagem compondo um quadro no qual a mitigação da desigualdade se torna ainda mais difícil.

O especialista aposta nas políticas públicas como uma das poucas ferramentas para mitigar a desigualdade, mas avalia que as que estão em vigor não são suficientes para esse objetivo. “Estudos mostram que as políticas fiscais e de transferência de renda brasileiras devem ser aperfeiçoadas para aumentarem o impacto na redução da desigualdade, algo que efetivamente não ocorre no país”, afirma Negri.

Previsões apontam que a desigualdade deve aumentar em decorrência da crise econômica causada pela pandemia de covid-19. Mas Medeiros alerta que a conclusão pode ser precipitada. “Não dá para dizer antecipadamente o quanto a crise vai afetar cada classe social. Isso porque se uma crise afeta mais os ricos, a desigualdade cai, se afeta mais os pobres, a desigualdade sobe”.

Negri lembra que “desigualdade não se trata apenas da distância do acúmulo de bens entre os mais ricos e o restante da população, mas sim sobre como a sociedade se organiza e garante uma existência individual satisfatória e mais igual para todos os seus membros.” Ele acrescenta que, para combater a desigualdade, é preciso ter uma preocupação ampla, que envolva “o sistema econômico, político, jurídico e moral”.

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