DOSSIÊ

O vírus da desigualdade

Num país com acentuadas desigualdades de classe, gênero e raça, a pandemia da covid-19 pode agravar disparidades. O vírus não escolhe nicho social, porém a fatia mais pobre da população é mais vulnerável à doença, por falta de recursos básicos de saúde, precárias condições sanitárias e de moradia

Texto: Secretaria de Comunicação

Moradores do Complexo da Maré, Rio de Janeiro, Brasil. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

China, dezembro de 2019. Um novo coronavírus começou a ser transmitido horizontalmente em Wuhan, a sétima maior cidade chinesa e a 42ª do mundo. Com população de quase 9 milhões de pessoas, o vírus espalhou-se rapidamente por seus centros urbanos e logo avançou para todos os continentes, dando início a uma das maiores crises sanitárias da atualidade. O reconhecimento oficial da pandemia aconteceu em 11 de março de 2020, quando Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), elevou o estado oficial da contaminação.

No Brasil, a infecção entrou para as estatísticas oficiais em 26 de fevereiro de 2020, quando o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou o primeiro caso de covid-19 em território nacional. Naquele mês, antes de o vírus ter sua transmissão local, especialistas afirmaram que o país estaria preparado para lidar – ou pelo menos conter – com possíveis altos níveis de infecção.

Autoridades de saúde pública acreditavam que bom histórico brasileiro em imunização seria uma vantagem no combate à nova infecção. Isso porque o Brasil tem um dos melhores programas públicos de vacinação do mundo e apresentou uma administração bem-sucedida do surto de zikavírus entre períodos de Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016). Infelizmente, as expectativas não se confirmaram e, assim como outras nações, o país passou a registrar níveis altíssimos de contaminação pelo Sars-Cov-2 (vírus da covid-19).

Disparidades regionais

As condições para combater a pandemia de coronavírus não são equivalentes de norte a sul do país. Regiões com menor renda média mensal também são as que possuem menos infraestrutura em saúde pública. A conclusão fica evidente ao correlacionar dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com os do estudo Onde estão os “ricos” no Brasil, publicado em 2020, com coautoria de Marcelo Neri, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Segundo levantamento do IBGE, com base no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde 2019 e no estudo Regiões de Influência das Cidades 2018, Norte e Nordeste são as regiões com menos estrutura para combater a covid-19. Elas reuniram os piores índices na proporção de médicos, leitos e ventiladores mecânicos por habitante. A situação mais crítica na distribuição de médicos foi a do Maranhão, com 81 profissionais para cada 100 mil habitantes. Na distribuição de respiradores, os piores colocados foram Amapá, com dez ventiladores mecânicos por 100 mil habitantes; seguido por Piauí e Maranhão, com 14; Alagoas, com 15; e Acre, com 16.

Publicado em 2020, com dados do Imposto de Renda de Pessoa Física de 2018, o estudo de Marcelo Neri, por sua vez, revela que várias destas unidades federativas figuram entre as com menor renda média mensal. Os piores colocados no ranking são todos do Norte ou Nordeste: Ceará (R$ 561,47); Alagoas (R$ 571,19); Piauí (R$ 510,69); Pará (R$ 469,34); e, por último, Maranhão (R$ 363).

Do outro lado, as unidades da federação com melhor preparo para combater a pandemia em relação ao quantitativo de médicos são: Distrito Federal, com 338 profissionais para cada 100 mil habitantes; São Paulo, com 260; e Rio de Janeiro, com 248. Em relação ao número de respiradores, o Distrito Federal é o primeiro colocado, com 63 para cada 100 mil habitantes; seguido do Rio de Janeiro, com 42; e São Paulo, com 39. Estas mesmas localidades federativas registraram as maiores rendas média mensal: Distrito Federal (R$ 2.981,04); São Paulo (R$ 1.977,02); Rio de Janeiro (R$ 1.720,70).

A precariedade na saúde levanta o questionamento sobre a existência de um problema social estrutural, que beneficia os mais ricos e coloca pessoas pobres à margem da sociedade. “Um país ou região pode ser desigual sem ser pobre, e pode ser pobre sem ser desigual. Porém no Brasil, pobreza e desigualdade andam juntas, o que agrava os problemas e faz com que a pandemia acabe sendo acentuada”, avalia a professora do Departamento de Sociologia da UnB, Ana Cristina Collares.

A pandemia no cotidiano

O dia normal de um brasileiro médio em idade produtiva começa com centenas de pessoas aglomeradas no transporte público, cena que se repete no retorno para casa. Ouvir nos noticiários que uma pandemia mundial foi declarada e que as cidades poderão adotar lockdown (paralização total ou parcial das atividades) é como um choque – sem possibilidades de ir trabalhar, milhões de brasileiros não têm como sustentar seus lares.

O auxílio emergencial foi proposto pelo governo brasileiro na tentativa de amenizar os impactos econômicos da pandemia a pessoas em situação de maior vulnerabilidade, como desempregados, autônomos e microempreendedores individuais. A medida não impede os recordes na taxa de desocupação. Segundo dados do IBGE, a taxa de desempregados atingiu 14,6% no terceiro trimestre de 2020, caindo para 13,9% no último trimestre. O número representa 13,4 milhões de pessoas em busca de emprego.

“Uma pessoa que não tem renda precisa ganhar a sua diária para sobreviver. Se a sociedade não banca esta situação econômica dos mais pobres, estes serão os responsáveis, não por querer, mas por necessidade, pela dispersão do vírus”, aponta Walter Massa Ramalho, professor na área de epidemiologia na Faculdade UnB Ceilândia.

A economia global sofre com os efeitos do Sars-Cov-2 e o Brasil segue pelo mesmo rumo. O fechamento de comércios, imposto pelo lockdown, e a redução de demandas por serviços em diversos setores incidiram em perda ou redução da renda de boa parte da população. O IBGE identificou, na segunda quinzena de julho de 2020, que a pandemia afetou 42,9% das empresas de serviços, 36,1% das empresas de comércio e 30,6% das empresas do setor industrial.

A realidade é ainda mais cruel para pessoas em situação de rua – população que cresceu 140% desde 2012, chegando a quase 222 mil brasileiros em março de 2020, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

“Muitas vezes esses grupos são ainda mais afetados pelo fato de não figurarem nas estatísticas sociais, não sendo adequadamente contemplados por medidas de prevenção e combate”, analisa Ana Cristina Collares.

A docente acrescenta que uma economia em risco afeta principalmente as populações mais vulneráveis, visto que “a pobreza e a exclusão social se tornam fatores que acentuam a incidência da covid, afetando alguns grupos desproporcionalmente e assim aumentando a desigualdade”.

Desigualdades estruturais

Assim como em outras epidemias, o patógeno não escolhe as suas vítimas, tampouco as seleciona por classe social. A contaminação ocorre de maneira aleatória, ou seja, o que leva a fatia mais vulnerável da população a figurar entre os mais atingidos é justamente a falta de acesso aos recursos básicos de saúde, como atendimento médico e condições sanitárias adequadas para prevenir o contágio.

Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) revelam que, em 2018, quase 35 milhões de brasileiros, 16% da população, não possuíam acesso à água tratada. O quadro é agravado pela falta de esgoto, situação que atinge aproximadamente 100 milhões de brasileiros, ou seja, quase metade (47%) da população, de acordo com relatório publicado neste ano pela organização não governamental Oxfam Brasil, com dados do Instituto Trata Brasil. Os números comprovam que medidas simples, como higienização constante das mãos com água e sabão, não estão ao alcance de todos.

Falta de planejamento urbano e condições precárias de moradia também vitimizam a população mais pobre. Segundo o IBGE, mais de 11 milhões de cidadãos vivem em casas inaptas para possibilitar o distanciamento, com condições precárias de moradia, que além do saneamento básico envolvem outros aspectos, como locais mal ventilados e muitos moradores por habitação.

Pesquisas evidenciam que a cor também é um forte marcador social no Brasil, já que pretos e pardos foram proporcionalmente mais atingidos pelos efeitos da pandemia de covid-19. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2020 do IBGE, pessoas pretas ou pardas são a maioria da população brasileira (56,3%). Ao analisar o impacto econômico da pandemia para os brasileiros, 61% dessa população teve a renda afetada, índice que ficou em 54% entre a população branca, segundo pesquisa feita pelo Datafolha a pedido do C6 Bank.

O estudo também aponta que o estresse e a solidão são maiores entre quem tem menor remuneração: metade dos integrantes das classes D e E declarou sentir-se solitária e isolada; em contrapartida, a taxa foi de 24% na classe A. Deve-se considerar que pretos e pardos são maioria (77%) entre os 10% da população com menores rendimentos, segundo a síntese de 2020 do IBGE.

“Este vírus é bem democrático, invade todos sem distinção. O que acontece com negros e pobres é a falta de acesso à saúde, de preservar o distanciamento social em habitações onde isso não é possível e o tipo de atividade informal que obriga o indivíduo a estar na rua e não cumprir o isolamento”, reforça a professora do Departamento de Geografia da UnB, Marília Luiza Peluso.

Recuperação

Especialistas norte-americanos discutem sobre uma recuperação da economia em “formato K”, ou seja, um rápido declínio seguido de uma subsequente divisão acentuada entre vencedores e perdedores. Isso significa que setores financeiro, de software, bancário, de telecomunicações e de serviços de varejo conseguiram recuperar os empregos perdidos no início da pandemia. Já setores como o de lazer, viagens e alimentação não tiveram o mesmo êxito – apenas metade dos empregos perdidos foram recuperados em 2021, segundo informações da agência financeira Bloomberg.

A ideia da recuperação em K foi elaborada para o cenário norte-americano e, segundo a professora Collares, é possível especular o mesmo para o Brasil. “Alguns setores foram mais atingidos pela pandemia e pela subsequente crise econômica. Grupos sociais, a exemplo de negros e mulheres, foram também desproporcionalmente atingidos, e a recuperação não se dará de maneira igual nem na mesma velocidade para todos”.

Paralela à tão necessária retomada econômica apontada pelos economistas, é preciso controlar a pandemia de coronavírus no país e não permitir que as desigualdades sociais se tornem ainda maiores. “A falta de eficácia no controle da pandemia pode criar um círculo vicioso que amplia os problemas da desigualdade e da exclusão. Quanto mais se prolonga o período em que a disseminação da doença não está controlada, mais riscos as pessoas em vulnerabilidade correm”, completa Ana Cristina Collares.

Uma das principais facetas da desigualdade é a concentração de renda. Segundo a Oxfam, organização internacional de combate à pobreza e à injustiça social, o 1% mais rico do planeta acumulou, em 2019, mais que o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas – cerca de 92% da população. Ademais, quase metade da população mundial sobreviveu com menos de US$ 5,50 por dia, o equivalente a menos de um salário-mínimo brasileiro ao mês.

O aumento da disparidade é confirmado pela ONU no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019. Apesar de o número de pessoas vivendo em extrema pobreza ter caído (de 1,9 bilhão em 1990, para 727 milhões em 2015), a desigualdade global caminha para níveis recordes, com 40% da riqueza concentrada entre os bilionários.

A organização aponta, no Word Social Report 2020 (Relatório Social Mundial, em tradução livre), que a concentração de renda segue aumentando, desde 1990, na maioria dos países desenvolvidos. Parte dos países latino-americanos conseguiu atenuar o quadro entre 1990 e 2010, quando a disparidade voltou a crescer em várias dessas nações.

Panorama brasileiro

O Brasil segue passos antigos e mantém-se entre as nações com desigualdade crescente. O país é o nono mais desigual do mundo, num ranking que contempla 164 nações, de acordo com o World Development Indicators (Indicadores de Desenvolvimento Social, em tradução livre), publicado em 2020 pelo Banco Mundial.

A classificação foi feita a partir do Índice de Gini, que mede a concentração de renda numa escala de 0 (sem desigualdade) a 1 (desigualdade máxima). O resultado do país foi de 0,539, tendo como base o rendimento domiciliar per capita brasileiro em 2018. O desempenho foi ainda pior em 2019, ao atingir a marca de 0,543. O dado retrata o aumento da desigualdade em relação a anos anteriores, como em 2015, cujo índice foi de 0,524 – o menor registado na série histórica iniciada em 2012. A pouca variação do coeficiente ao longo dos anos indica, ainda, a persistente disparidade na distribuição de renda entre a população.

Para se ter uma ideia do tamanho da desigualdade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, os 10% mais ricos concentravam quase metade (42,9%) da renda total do país. Além disso, 13 milhões de pessoas, ou 6% da população, viviam na extrema pobreza, com renda mensal ou inferior a R$ 151. Outros quase 52 milhões de pessoas viviam na pobreza, com até R$ 436 por mês.

Professor do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília, Camilo Negri destaca que a primeira dificuldade em torno das desigualdades sociais é sua compreensão como um problema. “A naturalização das desigualdades e a banalização da pobreza são comuns em países tangidos por altos níveis de desigualdade”.

Ele lembra que “o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo devido a fatores históricos, políticos, culturais e socioeconômicos” e afirma “não ser fácil, portanto, explicar e combater a desigualdade no país”.

Herança perpetuada

A desigualdade no Brasil também tem recorte de raça – uma triste herança do período colonial, marcado pela escravatura e exploração de negros e indígenas, que reverbera até os dias atuais. Pesquisas atestam que os maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social estão nas populações de cor ou raça preta, parda e indígena.

Segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2020 do IBGE, pessoas pretas ou pardas são a maioria da população brasileira (56,3%). Apesar disso, elas representam apenas 27,2% de quem está no grupo dos 10% com maiores rendimentos. Em contrapartida, são 77% dos indivíduos no outro extremo, o dos 10% com menores rendimentos.

A disparidade também fica evidente no rendimento domiciliar per capita médio, já que pessoas brancas recebem quase o dobro (R$1.948) do que é verificado entre pretas ou pardas (R$ 981).

Segundo o informativo do IBGE Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, de 2019, pessoas pretas ou pardas eram, proporcionalmente, mais que o dobro da população branca com rendimento inferior às linhas de pobreza apontadas pelo Banco Mundial. Considerando a linha de US$ 5,50 diários, em 2018 a taxa de pobreza de pessoas brancas foi de 15,4%, e de 32,9% entre pretas e pardas. Já na linha da extrema pobreza, para rendimentos inferiores a US$ 1,90 diários, estavam 3,6% das pessoas brancas e 8,8% das pretas ou pardas.

As desvantagens para pretos ou pardos são constatadas em diversos outros indicadores: a taxa de analfabetismo no grupo era de 9,1%, sendo de 3,9% para brancos; eles ocupavam apenas 29,9% dos cargos gerenciais do país, enquanto brancos preenchiam 68,6%; em 2019, quase metade de sua população (44,5%) vivia em domicílios sem pelo menos um dos serviços de saneamentos básicos, já entre brancos o percentual era de 27,9%.

O grupo também é o mais atingido pela violência: entre indivíduos de 15 a 29 anos, a taxa de homicídios chegou a 98,5 a cada 100 mil habitantes em 2017, contra 34 a cada 100 mil para brancos. Quando delimitada para jovens pretos ou pardos do sexo masculino, a taxa foi para 185.

Uma caraterística importante na análise da segregação racial é a atividade econômica, que permite identificar a segmentação das ocupações no mercado de trabalho. A Síntese de Indicadores Sociais, publicada pelo IBGE em 2020, revela que as atividades com menor rendimento possuíam proporcionalmente mais trabalhadores de cor preta ou parda: as agropecuárias (62,7%), de construção (65,2%) e serviços domésticos (66,6%). Segmentos com rendimentos superiores, a exemplo de educação, saúde, serviços sociais e administração pública, tiveram maior participação de pessoas de cor branca.

Para a docente da Faculdade de Direito da UnB Alejandra Pascual, o Estado brasileiro é responsável pelas violações sofridas por essas populações, por não ter feito reparação histórica que as beneficiaria, deixando-as em posição de extrema desigualdade econômica, educacional, de saúde, entre outras esferas.

“A desigualdade atinge o direito de ter uma vida plena. Os integrantes de grupos excluídos são vítimas de uma violência contra suas vidas: no preconceito, na discriminação, na impossibilidade criada pelo Estado e pela sociedade para que eles possam desfrutar da vida de forma digna e em igualdade de condições”, lamenta a docente.

Era das desigualdades

A desigualdade do país tem raízes num passado que remete, entre outros acontecimentos, à escravatura e à concentração de terras pela elite rural num país cuja economia é baseada na produção agrícola. Na obra Uma História de Desigualdade, 1926-2013, o doutor em Sociologia pela UnB e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Pedro Ferreira Souza, mostra que o Brasil viveu ondas de concentração de renda, em que os piores períodos para a desigualdade ocorreram com o Estado Novo (1937-1946) e com a ditadura militar (1964-1985).

Nos momentos mais críticos apontados por Souza, a renda de 1% da população mais rica do país era cerca de 25% da renda total, enquanto a do 0,1% mais rico girava em torno de 10% da renda nacional. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2020, da ONU, o cenário atual é ainda mais grave: o 1% mais rico do país concentrava, em 2018, 28,3% da renda do país; e os 10% mais ricos somavam 41,9% da renda total.

Em períodos próximos ou mesmo nos anos de piora na desigualdade do Brasil, o mundo também se encontrava em recessão. É o caso da crise de 1929, conhecida como a Grande Depressão, quando houve forte recessão econômica que atingiu o capitalismo mundial. Como consequência, diversos países entraram em crise, elevando os patamares de desemprego: Bélgica e Grã-Bretanha com 23% da população desocupada; Dinamarca com 32%; Alemanha com 44%.

No Brasil, o setor cafeeiro foi o mais afetado. O grão era o principal produto de exportação do país, representando cerca de 70% do café comercializado no mundo. Como consequência da recessão global, o produto ficou parado no mercado nacional, ocasionando queda nos preços e prejuízo em toda a cadeia produtiva. Ao mesmo tempo, o país passava por mudanças políticas oriundas da revolução de 1930, responsável pelo fim dos governos oligárquicos.

Em 1970, o mundo encontrava-se mais uma vez instável, dessa vez com a crise do petróleo (1973-1979), que afetou o ritmo de crescimento dos países industrializados. Com a descoberta de que o petróleo é uma energia não renovável, ou seja, de que o recurso é finito, a comódite tornou-se motivo de especulação financeira. O aumento nos preços do recurso, aliado ao consumo crescente pelos países industrializados, resultou em inflação e desemprego – ocasionando mudanças de políticas econômicas ao redor do mundo.

No Brasil, o impacto mais expressivo nas atividades econômicas foram: retração da produção industrial; queda no Produto Interno Bruto (PIB), que passou de 7% ao ano (década de 1970), para 2% (década de 1980); altas taxas de juros internacionais; além de dívidas internas e externas acumuladas pelo país, por conta da política fiscal expansionista adotada pelo governo federal. Os anos 1980 ficaram conhecidos como década perdida, no que se refere ao desenvolvido econômico vivido pelo Brasil e por outros países da América Latina.

Um olhar amplo para o século XX destaca o impacto direto na economia mundial das primeira e segunda guerras mundiais e de grandes epidemias, cujo resultado foi menos produção de riqueza e diminuição na concentração de renda. As guerras, por exemplo, ocasionaram o aumento da proteção do Estado para com seus cidadãos, o que favoreceu a distribuição de rendimentos e amplia as garantias sociais.

A partir da década de 1980, verificou-se a retomada na concentração de renda em países líderes da economia global. O fato decorreu de medidas que beneficiaram os mais ricos, como políticas de redução de impostos, adotadas por governos como o de Ronald Reagan (1981-1989) nos Estados Unidos e o de Margaret Thatcher (1979-1990) no Reino Unido.

Camilo Negri ressalta que, com a globalização, o que acontece a nível mundial respinga na economia local. “As desigualdades também envolvem as relações entre os países e sua interação no sistema econômico global. Como o Brasil insere-se de forma periférica nesse sistema, as condições de enfrentamento à desigualdade socioeconômica também sofrem limitações que dependem da soberania política do Brasil.”

Segundo o sociólogo francês e autor do livro O Capital no Século XXI, Thomas Piketty, nas economias de mercado as desigualdades aumentam porque aqueles que possuem as riquezas têm rendimentos que tendem a ser maiores que a média do crescimento econômico.

É preciso mudar

Os prejuízos sentidos na pele pelos cidadãos com direitos lesados em decorrência de desigualdades sociais são percebidos, em escala maior, no índice de desenvolvimento humano dos países e em suas taxas de crescimento econômico.

“Existem níveis de desigualdade que podem ser moralmente aceitáveis e funcionais. Entretanto, desigualdades elevadas são muito ruins. Elas afetam o próprio desempenho global da economia e fazem com que as pessoas não exerçam seu potencial pleno”, avalia Marcelo Medeiros, docente do Departamento de Sociologia e orientador da pesquisa feita por Pedro de Souza.

Segundo Medeiros, um conjunto de fatores move o país em direção à desigualdade e naturaliza esse quadro, a exemplo da distribuição desigual de propriedades e da política econômica. Para o especialista, parte da desigualdade no Brasil “tem origem obscura, ainda que proveniente de gerações passadas”, o que é “replicado e amplificado por capitalismo de compadrio, em que o êxito das ações depende do estreitamento de relações entre empresários e corporações com a classe política”. “Note bem, não são as pessoas, são as estruturas”, pondera.

Camilo Negri reforça que os diferentes níveis de acesso aos avanços da medicina, à educação de qualidade, à previdência social, ao reconhecimento social, ao trabalho digno, à remuneração adequada e à justiça social dependem de categorias como raça, gênero e classe – que segundo o professor, interagem compondo um quadro no qual a mitigação da desigualdade se torna ainda mais difícil.

O especialista aposta nas políticas públicas como uma das poucas ferramentas para mitigar a desigualdade, mas avalia que as que estão em vigor não são suficientes para esse objetivo. “Estudos mostram que as políticas fiscais e de transferência de renda brasileiras devem ser aperfeiçoadas para aumentarem o impacto na redução da desigualdade, algo que efetivamente não ocorre no país”, afirma Negri.

Previsões apontam que a desigualdade deve aumentar em decorrência da crise econômica causada pela pandemia de covid-19. Mas Medeiros alerta que a conclusão pode ser precipitada. “Não dá para dizer antecipadamente o quanto a crise vai afetar cada classe social. Isso porque se uma crise afeta mais os ricos, a desigualdade cai, se afeta mais os pobres, a desigualdade sobe”.

Negri lembra que “desigualdade não se trata apenas da distância do acúmulo de bens entre os mais ricos e o restante da população, mas sim sobre como a sociedade se organiza e garante uma existência individual satisfatória e mais igual para todos os seus membros.” Ele acrescenta que, para combater a desigualdade, é preciso ter uma preocupação ampla, que envolva “o sistema econômico, político, jurídico e moral”.

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