Amor feminista

Entrevista com a psicóloga Valeska Zanello tece outros olhares sobre o sentimento, sob uma perspectiva científica de gênero

Texto: Gisele Pimenta | 13 nov. 2023

Fotos: Geovanna Ataides. Ilustração: Secom/UnB.

Você acredita em amor incondicional? Aquele que supera situações impossíveis, pois é capaz de transformar pessoas e mudar realidades? Amor de mãe, talvez? Amor da vida? E se eu te contar que há outras formas de amar?

Ao contrário do que aprendemos desde pequenas, a ideia de um sentimento sem medidas e que a tudo suporta é uma armadilha perigosa, principalmente para as mulheres. Em nome do amor, muitos homens violentam e matam suas companheiras. É por ele, ainda, que inúmeras mães deixam sua carreira, projetos ou vida pessoal em segundo plano para se dedicarem ao cuidado dos filhos, do marido e da casa.

Essa percepção fez a psicóloga Valeska Zanello mergulhar nos estudos sobre mulheres, relacionamentos e saúde mental. Com centenas de publicações sobre o tema, a professora da Universidade de Brasília tem como propósito de vida “traduzir o conhecimento científico e de furar bolhas”. Por isso, investe esforços para produzir conteúdos em linguagem simples e divertida, como livros, jogos e vídeos.

“O conhecimento pode ser subversivo. Fico muito feliz quando mulheres me escrevem, mesmo sem saberem nada de Psicologia, e me agradecem pelo meu livro, contando que se libertaram de relacionamentos abusivos, por exemplo. Isso me alimenta e me dá vontade de continuar sendo pesquisadora.”

À revista Darcy, a também filósofa aborda os conceitos de “dispositivo amoroso” e”prateleira do amor”, detalhando os impactos das formas de amar que deixam as mulheres vulnerabilizadas ao focar na aprovação masculina para a validação de sucesso.

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Revista Darcy Por que as mulheres priorizam a relação amorosa enquanto tantos homens “perebados”, como a senhora os chama, não fazem o mesmo?

Valeska Zanello – Eu parto da psicologia clínica, da escuta das pessoas, não de um mundo abstrato. A filósofa Judith Butler fala que o gênero é uma repetição de performances, mas as performances deixam marcas na memória e no corpo, que são as emoções. As pedagogias afetivas não nos ensinam só trejeitos ou como nos comportamos, a cultura também te ensina a sentir de uma certa forma e a suprimir outras. Ou seja, o processo de socialização conforma também as emoções. A maneira de amar que as mulheres aprendem é identitária, centradas em um certo tipo de amor. Quer dizer que adquirimos uma forma de autoestima mediada pelo olhar do homem que nos escolhe. Se aprendemos que somos desejáveis apenas se alguém nos desejar, esse poder fica colocado no outro. Então, a metáfora que criei é a da prateleira do amor, na qual o sucesso é ser escolhida. Por exemplo, a solteira é vista como a mulher preterida, que nenhum homem quis. Você pode ser a presidenta da república, a the champion, mas vão falar assim: “nossa, ela é ótima, mas tadinha, é solteira, tá encalhada.”

Revista Darcy – Como essa prateleira do amor é organizada?

VZ – A prateleira coloca mulheres diferentes em lugares diferentes. Ela é marcada por um ideal estético, historicamente construído, e aprendemos que o nosso corpo é nosso principal capital, matrimonial. Se a mulher é branca, loira, magra e jovem, ela está em destaque. Significa que a prateleira também é racista. A partir daí, podemos pensar o preterimento afetivo de mulheres negras por homens brancos e negros, mas também das mulheres gordas, velhas, indígenas, com deficiência. É importante dizer que essa prateleira é ruim para todas as mulheres, mesmo sendo bem pior para algumas. Não tem lugar bom, o lugar privilegiado é o dos homens, avaliadores físico e moral das mulheres e aqueles que lucram com essa organização afetiva. Quando você ama os homens, você cuida deles, da vida deles, dos projetos deles. Vive por eles e para eles.

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Revista Darcy – Me causa incômodo perceber esse lugar na prateleira, de ver a mulher como um objeto, um produto. Essa é uma provocação para a ruptura?

VZ – O triste da prateleira é que a gente aprende a se autoobjetificar. Não vivenciamos nosso corpo pela potencialidade do prazer que podemos ter. Deixamos de ir à praia ou não tiramos a roupa porque nos sentimos gordas. Se você sai na primeira capa do jornal como a cientista do ano, sua primeira fala tende a ser sobre a sua aparência na foto. Então, pode-se dizer que é uma provocação, mas ela vem pela nomeação. O mal-estar é porque você começa a se enxergar, a ver o que você reproduz e a pensar sobre como sair disso. Além de perceber o incômodo, temos que buscar caminhos, descolonizar as emoções. Como? Primeiro, pela leitura. Leia feministas variadas. Em segundo lugar, forme grupos de mulheres, é muito importante compartilhar experiências, isso leva à politização do sofrimento e pode ajudar no letramento de gênero.

Revista Darcy – Você aborda muito sobre letramento de gênero, pode explicar?

VZ – Eu venho da filosofia da linguagem, a palavra não é uma mera etiqueta sobre as coisas, ela permite que algo seja acessado, visto, de determinada forma. Temos que fornecer palavras para visibilizar fenômenos. Quando você dá nome, você visibiliza. E, no caso de gênero e raça, você politiza o sofrimento. Quando você conversa com uma amiga e conta uma coisa que te faz sofrer na relação, ela fala: “gente, meu namorado faz igual! Será que a gente namora o mesmo homem?”. Não! É porque essa masculinidade, que tem a ver com pedagogias culturais e afetivas, com a socialização, está historicamente adoecida. Se você pegar um psicólogo clássico sem letramento de gênero e de raça, provavelmente ficará anos da sua vida achando que suas questões são um problema pessoal, quando é algo estrutural. Politizar os sentimentos é perceber que não é só o nosso dedo que é podre. No meu trabalho eu busco traduzir, em uma linguagem simples, o conhecimento científico. Esse conhecimento pode ajudar no letramento de gênero.

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Revista Darcy – De volta à metáfora da prateleira, ela explica os motivos pelos quais as mulheres frequentemente recorrem à validação masculina?

VZ – Total! E digo o seguinte: é muito mais fácil estar imune a uma crítica do que a um elogio. Hipoteticamente, você está na praia, o cara te chama de baleia e você retruca: “qual é meu filho, você é o quê?”. Supomos que isso não te afetou a ponto de você ficar mal ou remoendo o fato. Quer dizer que você está livre? Não, você está no meio do caminho. Você está realmente descolonizando as emoções quando o homem gostosão ou reconhecido socialmente te elogiar e isso não te levar aos píncaros da glória! Do contrário, você ainda está no funcionamento do dispositivo amoroso, a ponto de a avaliação desse homem sobre você ter a capacidade de te inflacionar narcisicamente. Acredito que a psicologia clínica, pela perspectiva de gênero sobre a saúde mental, ajude a enxergar coisas muito finas e sutis, sabe? Aquelas que nos prendem nesse tecido do patriarcado.

Revista Darcy – O enfrentamento ao patriarcado se torna mais difícil depois que a mulher tem filhos?

VZ – A maneira como a maternidade se configurou no ocidente é uma grande cilada para as mulheres. É triste dizer isso. Não é à toa que 38% das brasileiras não querem ter filhos. O que acontece na maternidade com as mulheres não é dividido com os homens. Ser pai é engravidar uma mulher. Ele não vai ser cobrado se não fizer nada além disso – e a criança vai sobreviver, geralmente, graças à energia mental, à vida e à dedicação das mães. Os homens não são afetados no seu desempenho profissional porque eles exploram e expropriam o trabalho das mulheres. O cuidar, baseado no dispositivo materno, nos ensina a priorizar desejos, necessidades e interesses dos outros, e não os nossos. O ápice dessa exigência ocorre na maternidade. Isso adoece psiquicamente as mulheres, elas se sentem culpadas, exauridas, com raiva. No entanto, na socialização, aprendemos a suprimir esse ódio, que é uma emoção muito importante, mas malvista nas mulheres. Outra metáfora que eu uso: se você está cozinhando um ovo e encosta o dedo na frigideira, a dor te faz tirar a mão da panela. O ódio pode te ajudar a se libertar de várias situações de opressão, te ensina a não colocar o dedo na frigideira de novo. Vejo mulheres em relacionamentos abusivos que têm dificuldade de odiar o cara, por exemplo. Entrou com um pedido de medida protetiva e pensa: “coitado!”. Homem geralmente não sente pena de mulher porque eles odeiam com muita facilidade. E sabe onde aparece o ódio da opressão na maternidade? Através da implosão psíquica, na depressão, na ansiedade… Ele se volta contra a própria mulher. Precisamos aprender a odiar no momento certo, usar o ódio ao nosso favor.

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Revista Darcy – Como eu transformo esse ódio em ferramenta para construir um ambiente de mais poder para as mulheres?

VZ – A mudança gera mal-estar. Que os homens se sintam incomodados, pois a paz deles significa o nosso silêncio. Está na hora de escolhermos o nosso bem-estar. O avanço no direito das mulheres é pela luta das mulheres. Para os homens é difícil abrir mão desse lugar confortável porque eles vão perder muito. Eu não gosto da palavra empoderamento, por exemplo, prefiro emancipação. A “inclusão” de todas as mulheres tem sido vendida pelo consumo, provocando empoderamento, que a meu ver é sempre colonizado. Por exemplo, comprar produtos de beleza, que te dão um lugar melhor (ou menos ruim) na prateleira: a curto prazo pode trazer satisfação, mas a estrutura e as hierarquias permanecem as mesmas. O capitalismo te dá um dedo para você desistir da mão completa. O intuito é não mexer na hierarquia que a prateleira promove. O empoderamento tem a ver com a ideia de melhorar seu lugar nesse jogo cujas regras você não escolheu, não concorda e, na maior parte das vezes, não tem consciência. Já a emancipação é mudar esse jogo.

Revista Darcy – Dá para não jogar o jogo?

VZ – O desejo não se constrói no além, não é algo intrínseco, da essência. Ele se constrói pela cultura. Muitas mulheres vão dizer que vão à academia não pelo ideal estético, mas por desejo próprio. Só que a satisfação narcísica, o prazer de se olhar no espelho, é uma construção pela socialização, e a gente se mete em ciladas por isso. Então, o letramento de gênero vai fornecer instrumentos para que pensemos sobre certas questões. Meu recado: mulher, não fique sozinha. Leia, participe de grupos de mulheres, saia com suas amigas para tomar um chopp, comer uma pizza, fazer trilha, viajar, dançar. E troque muitas ideias e experiências. O Brasil tem grupos que funcionam como um “Tinder das amigas”. São mulheres de classes sociais diferentes, situações diferentes, casadas, solteiras, em relações abusivas, que começaram a se encontrar e a se fortalecer. É mais fácil romper e descolonizar as emoções em conjunto.

> Confira outros trechos da entrevista

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TIPIFICAÇÃO DAS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER

FÍSICA: ameaça à integridade ou saúde corporal.

PSICOLÓGICA: conduta que causa danos emocionais e diminui a autoestima, tais como: insulto, controle, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, perseguição, chantagem, ridicularização, violação da intimidade, limitação do direito de ir e vir.

SEXUAL: relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça ou uso da força; impedir o uso de métodos contraceptivos; forçar matrimônio, gravidez, aborto ou prostituição; limitar direitos sexuais e reprodutivos.

PATRIMONIAL: retenção ou destruição de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos.

MORAL: calúnia, difamação ou injúria

VIOLÊNCIAS COTIDIANAS

GASLIGHTING: violência psicológica que faz a mulher duvidar da própria percepção. O agressor costuma usar manipulação emocional e distorcer a realidade.

MANSPLAINING
: quando o homem explica o óbvio ao pressupor que a mulher não conhece o tema.

MANTERRUPTING: interrupção da fala da mulher por algum homem em conversas, palestras ou apresentações.

BROPRIATING: quando o homem se apropria de ideias, pesquisas, serviços ou produtos de uma mulher. A prática é comum no ambiente profissional e acadêmico.

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